Não sabíamos nada e ainda não sabemos tudo

Porque é que é tão duro também para os profissionais de saúde? Porque absorvemos as emoções dos doentes em primeira mão, porque ouvimos as vozes tremidas de angústia dos familiares ao telefone, porque projectamos os nossos em cada doente nesta doença que pode atingir qualquer um, porque está muita gente a morrer.

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"E a vacina? Segundo todos os peritos a nível mundial, é extremamente segura e muito eficaz. Ao que se sabe hoje, é a única solução" Reuters/AMIR COHEN

O vírus saltou de um animal para o ser humano, algures na cidade de Wuhan, na China. Rapidamente mostrou ser altamente contagioso. O contágio é essencialmente interpessoal por via respiratória. Ao expirar emitimos pequenas gotículas de água que transportam o vírus, algumas delas mínimas e invisíveis (aerossóis) que em espaços fechados são fontes relevantes de contágio. Falar alto, cantar, ofegar e obviamente tossir faz aumentar o potencial de contágio. Em várias circunstâncias uma pessoa infectou dezenas de outras. Daí que, especialmente em espaços fechados, as máscaras e o distanciamento físico sejam incontornáveis, juntamente com a lavagem das mãos, que é fundamental para a prevenção desta e de tantas outras doenças.

A doença é muito traiçoeira, por ter espectros de gravidade tão variados, e a juntar a isso, a lentidão de todas as etapas, fazem com que este desafio seja esmagador. Entre o contacto e o início dos sintomas a mediana são cinco dias. Cerca de 30% não desenvolvem sintomas na fase aguda. A maioria dos sintomas são extremamente inespecíficos e por isso difíceis de destrinçar de outras doenças: febre, fadiga, dores de cabeça e musculares, tosse seca e diarreia são muito frequentes. Mais específicos são a perda de olfacto e paladar, que não estamos habituados a ver noutras viroses.

Das pessoas que desenvolvem sintomas cerca de 80% não precisam de cuidados hospitalares, mas algumas passam por períodos de grande desconforto. Os que precisam de cuidados de saúde hospitalares, os tais 15%, no essencial é por hipoxemia, e dá a volta apenas com alguns dias de oxigénio suplementar. Curiosamente, muitos doentes não têm a percepção da gravidade do seu estado, a chamada “hipóxia feliz”. Os doentes que precisam de cuidados intensivos são cerca de 25% dos internados, ou seja, 5% dos que têm sintomas, e que na esmagadora maioria dos casos é por necessidade de grandes concentrações de oxigénio e eventualmente de ventilação mecânica.

O grande desafio nos cuidados intensivos está na enorme absorção de recursos humanos qualificados. Contar ventiladores não chega. O intensivismo é das áreas mais diferenciadas da medicina, em que os seus profissionais precisam de anos de formação e experiência para exercer na sua plenitude, não esquecendo que esta pneumonia vírica por SARS-CoV2 tem uma evolução muito lenta.

A média de internamento é cerca de 30 a 40 dias nas unidades de cuidados intensivos. Não existe nenhum medicamento que possa alterar de uma forma significativa a evolução natural da doença, temos um ou outro com resultados benéficos, mas de relevância limitada. A grande aprendizagem tem sido mais organizativa, na gestão do risco de contágio, na simplificação do diagnóstico de cura/contágio, e em termos clínicos a menor utilização de ventiladores invasivos que implicam anestesia geral (ou sedação profunda) a favor de dispositivos que administram grandes concentrações de oxigénio mas com os doentes acordados, o que torna o internamento mais “simples” e menos prolongado.

A mortalidade nos doentes que requerem internamento hospitalar está por volta dos 30%. É preciso desconstruir este número em dois grupos. Os que morrem nos cuidados intensivos normalmente pela impossibilidade de os pulmões recuperarem, e aqueles em que a equipa médica entende não haver indicação para internamento nos cuidados intensivos pela diminuta possibilidade de sobrevida, tendo em conta a reserva fisiológica, capacidade funcional prévia, idade e comorbilidades.

Se vos disserem que a letalidade global é de 0,2% a 0,3%, também é verdade. O que é que isto quer dizer? Que, misturando tudo, miúdos e graúdos, saudáveis e os nem por isso, após contacto com o vírus na população geral, dois a três por mil, vão morrer. Mas se, por exemplo, formos ao grupo de mais de 70 anos, já são cem em cada mil. Isto é muito ou é pouco? E as mortes por “doenças não covid”? Não obstante a velha máxima de que todas as vidas contam, e qualquer pessoa é um valor insubstituível, o grande desafio da pandemia de covid-19 é que os tais 15% que necessitam de internamento hospitalar, e em especial os 5% que precisam de cuidados intensivos, absorvem imensos recursos humanos (e espaço físico também) que bloqueiam, entopem, e prejudicam o bom atendimento de tantas outras doenças. É importante que se perceba que não há doentes ou doenças preferidas, há apenas a obrigação inevitável de salvar primeiro os que estão em risco de morrer primeiro. Muitas áreas da medicina foram afectadas, eu não tenho a capacidade de as discriminar a todas, mas diria que as patologias cirúrgicas não urgentes foram as mais afectadas porque foi aos blocos operatórios que de uma forma geral se foi resgatar a preciosa ajuda de médicos, enfermeiros e auxiliares, e até o próprio espaço físico (unidades de recobro, por exemplo).

E as sequelas? Há também um espectro muito variável, desde pessoas que estiveram meses nos cuidados intensivos e agora estão impecáveis, até ao fenómeno de pessoas jovens e atletas que foram consideradas assintomáticas na fase aguda e semanas/meses depois manifestam cansaço por problemas cardíacos por miocardite. Na grande maioria, a recuperação física é total, sendo que as sequelas psicológicas têm uma importância relevante, no entanto, diria que é difícil de distinguir o que é que se deve à doença e o que que vem das emoções intensas que estamos todos a viver. Nos cuidados intensivos prolongados, há quase sempre lesões sequelares que se vão recuperando ao longo do tempo.

O atingimento emocional é difícil de abordar pois atinge demasiadas dimensões, mas percebemos que é duríssimo para os doentes estarem sozinhos sem visitas nos hospitais, e o seu contacto com os profissionais de saúde é feito amiúde, pelo risco de contágio, e sempre com máscaras, viseiras e fatos.

Porque é que é tão duro também para os profissionais de saúde? Porque absorvemos as emoções dos doentes em primeira mão, porque ouvimos as vozes tremidas de angústia dos familiares ao telefone, porque projectamos os nossos em cada doente nesta doença que pode atingir qualquer um, porque está muita gente a morrer e porque diz-nos a nossa consciência moral, que temos que ter cuidados redobrados na nossa vida social para não corrermos o risco de cair fora da luta pelas vidas de todos nós. Ou seja, vemos mais tristezas mas ainda com mais restrições à nossa alegria na vida em geral do que os demais. Há uma colectividade do sofrimento que tem sido difícil de gerir para quem passa todos os dias as portas de um hospital. E também porque estamos muito cansados.

Da crise económica e social diria apenas que me parece que os países que melhor a mitigaram foram os que melhor controlaram a pandemia.

E a vacina? Segundo todos os peritos a nível mundial, é extremamente segura e muito eficaz. Ao que se sabe hoje, é a única solução.

Resumo da covid-19: muito contagiosa, muitos assintomáticos, muito lenta, muitos espectros de gravidade diferentes, disruptiva para os sistemas de saúde. Prevenível com a vacina.

Não sabíamos nada e ainda não sabemos tudo, mas vemos a esperança numa seringa.

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