Adoção: o menino que queria ser um cavalo-marinho para vir da barriga do pai
É fundamental repensar as práticas de apoio profissional, em contexto familiar, nos processos de adoção, de modo a prevenir que crianças e jovens se sintam, uma vez mais, abandonados ou rejeitados pelas suas famílias.
De acordo com dados oficiais, nos últimos cinco anos, foram “devolvidas” 115 crianças e jovens adotados às instituições de onde saíram, no período de transição ou de pré-adoção. Os relatórios do Conselho Nacional de Adoção e Caracterização Anual da Situação de Acolhimento (CASA) referem que, em 2014, regressaram 36 crianças ao sistema, por interrupção de adoção, em 2015, 26 crianças, em 2016, 19 crianças, em 2017, 20 crianças, e em 2018, 14 crianças.
Observando estes tristes dados, concordo totalmente com o juiz José António Fialho (2017), quando referiu que “já não se pode tecnicamente falar em devolução, mas em abandono, porque a criança passou, entretanto, a ser filha dos adotantes”. Julgo que é fundamental repensar as práticas de apoio profissional, em contexto familiar, nos processos de adoção, de modo a prevenir que estas crianças e jovens se sintam, uma vez mais, abandonados ou rejeitados pelas suas famílias.
Neste texto, reportamo-nos a alguns fatores que podem contribuir para esta prevenção e conduzir ao sucesso das adoções. Para isso tomamos por referência o testemunho de um pai adotante, o Gonçalo.
O Gonçalo tinha um sonho, que era ser pai e construir uma família através da adoção. Ele contou-nos que “ser pai era um sonho antigo”: “O mais antigo, na verdade. E ser pai desta forma foi, desde sempre uma escolha, absolutamente consciente e clara na minha cabeça. Consciente de que a parentalidade, pela via da adoção, é diferente da parentalidade pela via biológica nos desafios, na ‘bagagem’ que traz uma criança que nos chega a casa vinda de outra casa (de acolhimento), mas certo de que seria —– se assim quiséssemos — igual no amor.”
Desse desejo de ser pai, nasceu o Duda: “(...) De um processo de estudo de candidatura e do tempo a cumprir na lista de espera nacional para adoção, nasceu-me um filho que é muito mais do que alguma vez pude sonhar. Mais no afeto, mais na integração e na adaptação, mais na convicta certeza que tem — do alto dos seus 6 anos — que a família é a base, o pilar, o aconchego.” A adoção é uma filiação arquitetada por laços de amor construídos num contínuo diálogo entre um pai que deseja um filho e um filho que deseja um pai. Se assim o entendermos, não há uma distinção afetiva entre a filiação biológica ou adotiva.
Duda foi filho adotado e os filhos adotados não nascem do “útero” dos pais adotivos, mas, como testemunha o pai Gonçalo, o Duda é um: “Filho. Parido. Nascido. Chegado a este colo do pai que por ele esperou. Parimos os filhos mesmo quando não nos nascem da carne e não nos rasgam a pele. Porque nos rasgam o peito inflamado por um amor que empurra para fora do peito um coração bêbado de amor, que em chamas reclama reconhecer o que nunca antes sentiu.”
A chegada de um filho adotivo afeta todo o sistema familiar. Envolve novos significados e mudanças de papéis para aqueles que se tornam avós, tios, primos. Duda recebeu um pai, mas também recebeu tios, tias, primos, primas, avós e avôs.
O Gonçalo e o Duda vivem a presença de uma rede de apoio familiar e, através disso, têm desenvolvido novas alternativas de socialização para o Duda, que tem recebido da sua nova família um suporte moral e psicológico.
O Duda recebeu do pai Gonçalo tempo e disponibilidade, fatores fundamentais para o processo de adaptação e integração recíproca entre eles, que os ajuda a estruturar dúvidas e incertezas.
Como refere Gonçalo, esta relação entre o pai e o filho “(...) é uma viagem que começou há dois anos”, que se foi construindo em cada novo dia do pai Gonçalo com o seu filho Duda, na interação através da partilha de atividades, de rotinas do dia a dia, de brincadeiras. No seu papel de cuidador, e através da sua disponibilidade física e psicológica, assumindo ser um pai presente no quotidiano de Duda, Gonçalo foi estando cada vez mais ativo e atento para compreender as necessidades de cada novo dia do seu filho. O Gonçalo reportou esta aprendizagem do processo de adaptação: “(...) Sim, nos meus sentimentos e nas minhas responsabilidades, fui pai sozinho. Passei por todo o processo com muito apoio da minha família, mas consciente de que esta era uma tarefa minha, uma responsabilidade que eu assumi e que me honraria, a qualquer preço.”
Na adoção, como em todas as relações de parentalidade, há dores e desafios e alegrias. Gonçalo está consciente disso: “Parimo-los a cada vitória, a cada conquista, a cada noite febril que conhece uma aurora no colo que lhe pertence.” Para este pai, a integração, o “nascimento” do Duda “foi fisicamente cansativo, muitas vezes emocionalmente desgastante”. “Mas não mais (ou menos) do que vejo, em média, nas famílias — formadas das mais variadas formas — que temos à nossa volta.”
Um dos fatores que o Gonçalo refere que contribuíram para a boa integração familiar do Duda foi a abertura com que sempre lidaram “com o seu passado em conversas frequentes (ainda hoje) sobre a sua família biológica”. “(...) A excelente capacidade de verbalização, de aceitação e de discussão do tema que o meu filho tem, com uma maturidade muito pouco expectável para a sua idade.”
Esta história de amor não tem fim e ilustra que adotar implica ser adotado para construir uma família para a vida. Com entrega, perseverança e inteligência emocional, um pai e um filho adotaram-se mutuamente: “Ao jantar, o Duda disse-me: ‘Sabes, pai… Eu gostava de ser um cavalo-marinho. E que tu fosses também. Porque assim, eu já podia ter nascido da tua barriga, porque nos cavalos-marinhos, são os pais que têm os filhos na barriga.’”