Acesso ao ensino superior: será para alterar?
Há uma questão que pode ser consensual: se o ensino superior se responsabilizar pela seleção e seriação dos seus estudantes, o ensino secundário caminhará mais para a sua condição de terminalidade.
Teria passado despercebida a recomendação, de 6 de novembro de 2020, do Conselho Nacional de Educação (CNE) sobre o acesso ao ensino superior?
Não tanto pela discussão do tema, que tem sido recorrente em diversos pareceres deste órgão consultivo, mas pelos silêncios que se têm registado, particularmente do ensino superior. Num ano em que se registou o maior número de estudantes matriculados no 1.º ano do ensino superior, é adequado voltar a olhar para a problemática do acesso e para as vantagens de alteração das regras atualmente instituídas. No que diz respeito às funções do ensino secundário, é sobejamente conhecida a distinção entre terminalidade e prosseguimento de estudos, representadas, respetivamente, pelos cursos orientados para o prosseguimento de estudos e pelos cursos orientados para a vida ativa.
Já é longa esta divisão, que remonta ao ensino liceal/ensino técnico, de ontem, e aos cursos científico-humanísticos/profissionais, de hoje, se bem que a diversidade de cursos do atual ensino secundário traga para o sistema educativo uma maior complexidade, mesmo que seja dito, na legislação, que todos os alunos têm capacidade e podem optar por qualquer oferta educativa e formativa disponível, com vista ao prosseguimento de estudos ou à inserção no mercado do trabalho.
Há uma questão que pode ser consensual: se o ensino superior se responsabilizar pela seleção e seriação dos seus estudantes, o ensino secundário caminhará mais para a sua condição de terminalidade, atenuando ou resolvendo a sua identidade frágil e deixando de ser o corredor para o ensino superior, podendo ser a ponte tanto para o ensino superior, como para a vida ativa.
O atual quadro legal de acesso e ingresso data de 1998, ainda que, sucessivamente, tenha sido alterado em aspetos funcionais, com destaque para a criação, em 2020, de concursos especiais para titulares de cursos do ensino secundário de dupla certificação e artísticos especializados.
Se a introdução do numerus clausus foi uma medida de controlo do acesso, que se mantém desde o ano letivo de1978/79, antecipada pelo serviço cívico e pelo ano propedêutico, os critérios de seriação têm predominado sobre os critérios de seleção, ou seja, a responsabilidade do acesso tem sido colocada mais nas escolas secundárias do que nas instituições do ensino superior, reconhecendo-se a generalizada limitação que estas últimas têm na seleção e seriação dos seus candidatos no n.º 1.º ciclo de estudos, já que nos 2.º (mestrado) e 3.º ciclos (doutoramento) a realidade é totalmente diferente.
Fazendo-se a caracterização do acesso/ingresso nas últimas décadas, observa-se que as instituições de ensino superior têm assumido alguma responsabilidade na seleção de candidatos para os cursos que oferecem, conforme estes registos: exame de aptidão (para alunos que não obtivessem determinada classificação em disciplinas nucleares, sendo realizado por instituição de ensino superior, anteriormente a 1974); prova de acesso de nível científico e cultural; provas específicas; provas para maiores de 25 anos (a partir de 1979) e para maiores de 23 anos (desde 2006), numa percentagem residual (não menos do que 5% do número de vagas fixado para o regime geral de acesso do conjunto dos ciclos de estudos de cada instituição).
Antes de colocar questões, considerem-se alguns dados: 62% dos alunos do ensino secundário transitam para o ensino superior; desses alunos, 80% são oriundos de cursos científico-humanísticos e 20% de cursos profissionais; 81,5% estão no ensino público e 18,5% estão no ensino privado, faltando saber quantos desses alunos são oriundos dos ensinos privado e público.
E isto porque persiste a ideia de que os exames no final do ensino secundário, e tidos em conta para a seriação dos estudantes do ensino superior, salvaguarda o princípio da igualdade, atenuando quer a desigualdade intrínseca ao fator socioeconómico dos alunos, quer a desigualdade da frequência do ensino público e do ensino privado, sabendo-se, estatisticamente, da existência de uma relevante diferença entre a nota interna da escola e a nota de exame nacional que os distingue e com efeito direto no acesso ao ensino superior.
Mas o que recomenda o CNE? São destacados alguns pontos, em relação aos quais coloco sempre uma questão, entre parêntesis, para possível debate: medidas que corrijam a representatividade social do corpo estudantil (longe ou perto do sistema de quotas?); redução do peso dos exames nacionais (não são as atuais percentagens já suficientemente válidas?); reforço da responsabilidade das instituições de ensino superior pelo processo de acesso e ingresso (para o regime nacional de acesso ou somente para os casos específicos?); revisão das formas de avaliação utilizadas no ensino secundário, designadamente nos cursos científico-humanísticos, de forma a assegurar a avaliação das competências constantes do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (sim, e o peso da avaliação sumativa não perdurará se os exames forem mantidos?); introdução progressiva das alterações no sistema de acesso ao ensino superior (depois de duas décadas de um sistema de acesso, não seria preferível optar por uma mudança mais radical?).
Em síntese, será que vale mesmo a pena discutir se existem condições sociais e políticas para declarar que a conclusão do ensino secundário deveria constituir tão-só um pré-requisito para a entrada no ensino superior, competindo a estas instituições determinar e implementar os critérios de seleção e de seriação dos seus estudantes?
Será possível manter por muito mais tempo a prática de serem as escolas do ensino secundário a certificarem a entrada nas instituições de ensino superior, que tardam a assumir outras responsabilidades?