O Natal, se falasse, não queria ser excepção
Dar uma carta verde ao Natal é uma enorme falta de respeito pelo seu simbolismo. É promover mais mortes, num dia/época que pretende, mais do que tudo, celebrar a vida.
Eu sou ateu, mas adoro o Natal. Acredite-se ou não no seu significado original, o que é que é o Natal para além de um grande golpe comercial e consumista? O Natal é carinho, é contacto, é união, é confraternização à volta de uma mesa, é cuidarmos das almas uns dos outros, são os abraços sentidos de quem celebra a vida que passou e a que há-de vir... E por isso tudo é que, este ano, o Natal não deve existir. Ou pelo menos não com as excepções anunciadas, como uma saída precária de fim-de-semana, de uma pena de prisão, onde vale tudo menos arrancar olhos.
Eu espero que os mais ligados ao simbolismo da vida de Jesus não me levem a mal, porque as minhas palavras em nada são um ataque à instituição Igreja e suas pessoas. Aliás, considero até que a Igreja Católica tem tido um papel exemplar perante este desafio inédito. Esteve, está e sei que estará de parabéns pela posição pedagógica e sensata ao não questionar os dogmas da ciência que, curiosamente, quase sempre interceptaram os dogmas da fé. Mas a Igreja foi exemplarmente respeitadora da ciência e da vida, ao fechar de imediato as igrejas, como também se fecharam mesquitas, templos e sinagogas em todo o mundo, materializando a mensagem que é comum a todas as religiões, que é a defesa de valores e comportamentos pelo bem comum.
“Acalmou”, dizem os dados, as curvas e os especialistas. Permitam-me tentar explicar o que é este “acalmar”. Imaginem que o nosso Serviço Nacional de Saúde é um carro que permite transportar cinco pessoas em segurança. De repente, este carro é obrigado a meter mais cinco e vão todos ao molhe lá para dentro. Agora metam mais dez. Uns vão para a mala sem ar, outros para cima do capô, que começa a amolgar, alguns tentam, mas não conseguem entrar e até há uns que empurram outros borda fora. Quando o carro está todo espatifado com as suspensões rebentadas, e os que vão lá dentro quase não respiram, o dono do carro diz orgulhosamente: “Vês, como aguenta?” E ninguém o pode acusar de estar a mentir.
“Acalmou”, com cuidados intensivos improvisados, áreas da saúde “congeladas” pela avalanche de doentes com covid e interrupção de tratamentos e cirurgias que estarão comprometidos sempre à dimensão do descontrolo da pandemia.
“Acalmou” num limite em que o carro se está a desfazer e os que vão lá dentro não estão a gostar da viagem. É assim que estamos agora. Estabilizar no péssimo continua a ser péssimo.
Dar uma carta verde ao Natal é uma enorme falta de respeito pelo seu simbolismo. É promover mais mortes, num dia/época que pretende, mais do que tudo, celebrar a vida. É deixar a ideia no ar de que assim umas excepçõezinhas de almoços e jantares de 20, 30 ou 40 pessoas no 24 e 25 de Dezembro e, já agora, porque não uns dias antes e uns dias depois, como sempre foi, é só uma gordurinha natalícia que depois compensamos após as falsas promessas habituais da passagem de ano.
Eu estou a morrer de saudades do Natal e precisava do Natal mais do que nunca. Morro de saudades dos meus amigos, daqueles abraços que apertam os ossos com tanta força que até sai uma lágrima do olho. Queria muito ver a minha família toda, seja às prestações, seja toda de uma vez. Mas obrigaram-nos a não tirar férias e até a não nos demitirmos, nem que estejamos a cair para o lado, e eu compreendo e aceito esse sacrifício de não dar descanso aos que mais precisavam de descanso, e aos que mais precisavam do Natal. O que eu não compreendo e não aceito é que promovam e legitimem a maior fonte de contacto entre pessoas do ano, e que indubitavelmente vai catapultar o número de infectados e, acredite-se ou não, vai levar à morte de muitas pessoas que não precisavam de morrer.
Digam-me, por favor, se estou a dizer alguma mentira...
Celebrar o Natal é aumentar o número de pais e avós que para o ano vão ser um lugar vazio na mesa. É duro? É triste? É. Mas para mentiras e demagogias já temos muitos.
O Natal, se falasse, não queria ser excepção.