Crise e corrupção: uma combinação perigosa
A “corrupção” tem lugar cativo entre as maiores preocupações dos europeus. Mas isso não significa que denunciem sempre os casos de corrupção que testemunham ou que punam sempre os políticos acusados de actos corruptos. O que poderá explicar estas aparentes contradições?
Todos somos contra a “corrupção”: políticos, jornalistas, empresários, sindicalistas, cidadãos em geral. “Estratégias nacionais” e “planos de combate” sucedem-se com regularidade. Na linguagem da Ciência Política, a corrupção é aquilo a que se chama um tema de “valência”: todos temos opiniões diferentes sobre muitos assuntos, mas ninguém diz querer “mais corrupção”, da mesma maneira que ninguém quer mais desemprego ou menos crescimento económico. E em muitos estudos, quanto mais generalizada a perceção de que a corrupção prevalece, menor tende a ser a satisfação dos cidadãos com a maneira como a democracia funciona no seu país e — mais preocupante — menor é o apoio à própria ideia de “democracia” enquanto regime. Em Portugal é assim também.
E, no entanto, quando se olha com mais atenção para esta aparente aversão generalizada à corrupção, nem sempre se observam as consequências que se imaginariam. Partidos e políticos alegadamente — ou até comprovadamente — envolvidos em casos de corrupção nem sempre são punidos nas urnas. Casos concretos e recorrentes descritos na comunicação social nem sempre geram indignação ou condenação sociais significativas.
Num Eurobarómetro recente (EB especial 502, de Dezembro de 2019), quase 80% dos europeus (e dos portugueses) que afirmam ter testemunhado um caso de corrupção admitem também que não o denunciaram. O projeto EPOCA – Corrupção e Crise Económica: Uma Combinação Perigosa, conduzido no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, apoiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e onde participam os autores deste texto, tem como objetivo compreender algumas das fontes destas aparentes contradições.
Do abstrato para o concreto
O primeiro passo do projeto tem sido o de analisar alguns dos dados secundários disponíveis, nomeadamente os resultantes de inquéritos à população conduzidos no âmbito de outros estudos. Uma primeira conclusão é que o grau de “tolerância” dos europeus em relação à corrupção é manifestado de maneira muito diferente, dependendo de como são questionados sobre o tema. No já mencionado Eurobarómetro (EB especial 502), cerca de 70% dos europeus consideram a corrupção, em geral, “inaceitável”. Em Portugal, esse valor aumenta para 88%, absoluto recorde europeu, acima de países como a Dinamarca, a Finlândia ou a Suécia. Tudo parece estar bem encaminhado para um combate feroz à corrupção e com forte apoio social em Portugal.
Contudo, em estudos usando metodologias muito semelhantes, quando se indaga sobre até que ponto os europeus consideram justificáveis atos concretos tais como “alguém aceitar um suborno no cumprimento dos seus deveres” (Estudo Europeu dos Valores, 2017), as percentagens invertem-se: quase 70% dos europeus tendem a considerar estas práticas total ou parcialmente justificáveis. A relativa tolerância com que são encaradas essas práticas não é difusa, ou seja, é maior junto de determinados perfis de indivíduos e menos junto de outros. Em particular, a tolerância em relação à corrupção aumenta entre os que acham que ela se encontra socialmente disseminada e entre os que admitem terem testemunhado práticas semelhantes.
Daqui decorrem duas possíveis implicações. A primeira é que a maneira como alguns cidadãos definem “corrupção” — que quase todos tendem a considerar inaceitável em abstrato — nem sempre inclui algumas das práticas que outros (ou até a lei) tenderiam a definir como “corruptas”. A segunda é que aquelas que os cidadãos pressentem serem as normas sociais e comportamentais prevalecentes afetam, compreensivelmente, aquilo que acabam por achar eticamente aceitável ou justificável. O risco, óbvio, é o da instalação de um círculo vicioso: mais corrupção, que, por sua vez, leva a maior aceitação social da corrupção, que, por sua vez, e fechando o círculo, leva a mais corrupção.
O discurso direto
Outro trabalho já conduzido no âmbito do projeto EPOCA foi a realização de grupos focais — discussões com conjuntos de pessoas dirigidas por um investigador — em seis instituições de ensino portuguesas, com um total de 66 participantes. Nos breves questionários aplicados, amplas maiorias dos participantes rejeitaram a ideia de que alguns princípios de ética política pudessem ser ignorados em situações de crise, assim como a ideia de que a corrupção pudesse ser aceite como parte do funcionamento rotineiro de uma democracia. Mais uma vez, tudo previsível e encorajador.
Contudo, depois, no seu discurso direto, tudo se complica. Algumas citações retiradas das discussões guiadas ocorridas entre os participantes ilustram os dilemas que surgem quando se aprofundam as questões tipicamente colocadas nos inquéritos sobre o tema:
Participante 1: “Acho que a gente tem que se policiar também para não se corromper. Porque às vezes quando num contexto está te beneficiando, de alguma forma, às vezes você deixa de enxergar o ângulo. Sabe que você vai pensar no seu e vai colocar o seu desejo individualista na frente do coletivo. Então, eu acho que é a questão de enxergar no contexto amplo, qual o mal que aquilo [corrupção] vai fazer e saber… realmente eu vou-me beneficiar, mas não é a forma correta, não deveria fazer assim. Que às vezes, se você vê do seu lado, OK! Está tudo bem, isso não é corrupção, porque você está vendo ali o seu benefício próprio. Mas é, continua sendo, não deixa de ser.”
Participante 2: “Eu acho que é o caso de eu saber de alguém [caso de corrupção] e eu não falar porque tenho medo das represálias da empresa, é muito pelo facto de normalmente quem está no poder também estar associado a esse jogo e por isso é que eu não posso falar. Porque, se eu falar ao meu patrão, vou ser eu que vou ser o penalizado, não vai ser quem está a fazer a atitude errada.”
Participante 3: “Em relação à corrupção... eu acho que há um aspeto primordial. Acho que as pessoas aprenderem a dizer ‘não’. Eu vejo com muita dificuldade as pessoas, em múltiplas situações, não serem capazes de dizerem ‘não’, ou seja, não assumem o valor e depois em função desse valor, quando são confrontadas com as coisas, perdem a capacidade de dizer ‘não, isso eu não faço’. E esta dificuldade resulta de deficientes valores pessoais. Ou seja, o valor não é suficientemente forte para a pessoa, perante situações concretas ser capaz de dizer: “Não, não! Isso eu não faço!”
As citações evocam vários problemas diferentes: a tensão entre o benefício individual e o custo coletivo e social; a futilidade ou mesmo o risco de “agir segundo os princípios” quando todo o “sistema” é sentido como corrupto; a relativização dos “princípios” quando também há benefícios práticos e concretos a serem recolhidos.
Em conjugação com o ponto anterior, estes dados ajudam a perceber as limitações de muitas das abordagens mais convencionais ao fenómeno, muito focadas em perceções e atitudes gerais em relação a prevalência da corrupção no país, na economia, na política, ou na sociedade como um todo. Quando nos aproximamos da experiência vivida das pessoas e da forma como refletem sobre ela em situações concretas, emergem dilemas que uma abordagem mais rígida e formal terá sempre dificuldade em captar.
“Rouba, mas faz”
Um desses dilemas, a que o projeto EPOCA se dedicará de forma mais sistemática até à sua conclusão no final de 2021, é o que se relaciona com a maneira como os cidadãos ponderam a situação económica e a corrupção como critérios de avaliação dos agentes políticos. Estudos que alguns de nós já conduziram mostram um fenómeno curioso: há uma interação entre a corrupção e a economia como critérios quando se avalia o desempenho das autoridades políticas.
Com “interação”, o que se quer dizer é que a relação entre duas coisas está dependente de um terceiro fator. Por exemplo, em toda a Europa, a satisfação das pessoas com as autoridades políticas é afetada pelo desempenho da economia. Contudo, é menos afetada nos países onde a administração pública é considerada mais imparcial e onde o controlo da corrupção é sentido como mais eficaz. Por outras palavras, onde a qualidade das instituições é mais elevada, o desempenho económico parece ser menos importante para as pessoas como critério de avaliação da competência dos Governos. Pelo contrário, nos países onde essa qualidade das instituições é menor, o apoio às autoridades políticas parece depender muito mais daquilo que os Governos “fizeram pelos eleitores ultimamente” em termos de benefícios económicos concretos.
Uma outra maneira de olhar para o mesmo tipo de resultados é constatar como as eventuais punições eleitorais que a corrupção pode trazer podem depender também elas próprias do desempenho da economia. Quando a situação económica é positiva, os eleitores parecem descontar a corrupção como fator de avaliação dos Governos.
Contudo, quando a situação se torna crítica, parecem acordar para o tema e castigar aqueles que veem como corruptos. Vários estudos, nomeadamente na América Latina, mostram como os eleitores tendem a “olhar para o lado” perante práticas ou comportamentos desviantes dos padrões de ética que deviam governar o exercício de cargos políticos quando os dados da economia são positivos ou quando o seu bem-estar pessoal aumenta. “Rouba, mas faz” é o famoso bordão político brasileiro que capta exemplarmente esta relação peculiar entre diferentes tipos de desempenho governativo e a forma como os cidadãos lhes reagem.
Um dos objetivos do EPOCA, seja através de um inquérito que já iniciou o seu trabalho de campo, seja através de dados secundários já disponíveis, seja ainda através dos nossos dados mais qualitativos, é precisamente explorar em que medida o mesmo tipo de fenómeno se encontra em Portugal.
O perigo
Se as crises parecem “despertar” os eleitores para um tema tão relevante como a corrupção, de onde vem o “perigo” do título deste artigo? Existe hoje, por toda a Europa, um discurso anticorrupção voltado para a reconstituição de padrões de ética e de transparência na atividade política e económica, veiculado por muitas instituições nacionais e internacionais. Mas esse não é o único tipo de discurso contra a corrupção. Há outro, que se esforça por indiferenciar todas as alternativas políticas existentes e — mais grave — apresentar as instituições políticas da democracia liberal, elas próprias, como impedimentos ao combate aos “políticos corruptos”. Distingui-los é fundamental, mas nem sempre é fácil.
Da mesma forma, a intolerância em relação à corrupção entre os cidadãos tanto pode manifestar-se sob a forma de uma recusa de normalização de práticas concretas como sob a forma de uma rejeição genérica do sistema político e dos seus protagonistas como um todo.
Num inquérito recente em Portugal, questionados sobre qual o partido que tem melhores propostas para lidar com a corrupção, 42% dos inquiridos responderam espontaneamente “nenhum.” Não nos cabe avaliar se esta quase metade dos portugueses tem ou não razão. Mas talvez nos caiba ficar inquietos com a prevalência desta perceção de que não nos são oferecidas reais alternativas ou soluções para o problema, especialmente no quadro da grave crise que vivemos.
Economista; Cientistas Políticos. ICS-ULisboa