Victor Hugo Pontes e Gonçalo M. Tavares levam o luto ao palco

Os Três Irmãos, que se estreia esta sexta-feira no Teatro Viriato, em Viseu, fala de filhos que se perdem e reencontram depois da morte dos pais, filhos que pertencem aos pais, pais que não deixam de ser pais depois de o coração deixar de bater e irmãos mais novos que descobrem coisas não muito agradáveis sobre os irmãos mais velhos. Não é fácil, mas a família nunca é fácil.

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Nelson Garrido

Abelard, Adler e Hadrian não sabem o que é feito dos pais. Estão no meio de um “não-lugar”, que é também um “presente cheio de ausências”, onde darem corpo às memórias de um tempo que tão cedo não regressará é o máximo que podem fazer. Rabiscam no chão as coloridas imagens que ainda resistem na sua mente, contemplam a pintura, apagam tudo com apressada insatisfação, voltam a rabiscar. Ao fim de algum tempo, percebem que não há volta a dar. A mãe e o pai partiram. E agora?

É uma questão que dá pano para mangas. Quem são os filhos depois do desaparecimento dos pais, que após a morte física não deixam de ser pais dos filhos que não deixam de ser filhos (é menos confuso do que soa)? Como se reerguem, como se reinventam, que histórias e segredos que o papá e a mamã não contavam à pequenada à mesa de jantar desvendam, de que maneira reagem e respondem às peças do puzzle que durante anos o tapete tratou de esconder?

Estas são apenas algumas das inquietações que sustentam Os Três Irmãos, peça que juntou o coreógrafo Victor Hugo Pontes ao escritor Gonçalo M. Tavares e que se estreia esta sexta-feira no viseense Teatro Viriato, por lá ficando até ao dia seguinte. Os corpos dos intérpretes Dinis Duarte, Paulo Mota e Valter Fernandes, explica Victor Hugo Pontes ao PÚBLICO entre ensaios, “ficcionam os pais” enquanto não conseguem assimilar que estes já cá não andam. “Quando estamos a crescer, os pais costumam ser os ídolos em quem nos projectamos. E de repente, se essas imagens já não estão lá, sentimo-nos à deriva. Uma espécie de ‘Mas onde é que está o meu referencial?’, no fundo. É claro que há outro campo no meio disto tudo, que é o não podermos fugir de quem somos. Mesmo com o factor da ausência, a família está lá sempre, nunca deixamos de fazer parte dela”, sugere.

Nelson Garrido
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“Qual é a família funcional nos dias de hoje?”

Victor Hugo Pontes e Gonçalo M. Tavares começaram a trocar ideias durante a quarentena, mas não quiseram fazer um espectáculo sobre o novo coronavírus. A pandemia já era “suficientemente sufocante, demasiada ficção por si só”, aponta o coreógrafo, que ainda assim não escapou a alguns temas virtualmente inescapáveis desde que a covid-19 estipulou que não podemos dar abraços. A ideia do luto, por exemplo, “das pessoas que foram desaparecendo ao longo do período em que estivemos encerrados em casa e de quem não pudemos despedir-nos”, é incontornável em Os Três Irmãos.

Para o irmão mais velho, se calhar os pais começaram a desaparecer muito antes da hora. “Era o filho único até aparecerem os outros”, passou a ter de competir pelos olhares e afectos, teve de começar a ser o rapaz forte e responsável quando ainda estava habituado a ser só o menino. Há ciúmes, assim como há a ideia monárquica do filho mais velho como “o que conta”, o “herdeiro do trono”, o “mais forte”, o que tem primazia.

Quase falaríamos do início de uma família disfuncional, “mas qual é a família funcional nos dias de hoje?”, ri-se Victor Hugo Pontes. Certo é que, pelo menos no primeiro acto, os corpos — literalmente — “encaixam uns nos outros”, “apoiam-se uns aos outros”. Sabem que estão perdidos, tão perdidos como se sentem os pais “quando os filhos saem do ninho”. Estão a passar pelo mesmo sofrimento e entendem perfeitamente o quão dura será a cicatrização.

Por falar em cicatrização, há muitas feridas antigas, pertencentes a esse mesmo passado aparentemente adocicado pela leveza da inocência que o trio não sabe como dessacralizar, que vão sendo descobertas. São “as marcas que vão ficando connosco ao longo da vida”, as “tatuagens que às vezes são visíveis e outras não tão visíveis”. Se calhar, aqui e ali o paizinho teve de sacar do cinto. Os irmãos mais novos demoram sempre um bocado a perceber o que aconteceu aos mais velhos. Não estiveram cá durante algum tempo, têm muita conversa para pôr em dia.

Entre a camada coreográfica e a camada literária, há momentos em que os bailarinos seguem à letra o texto de Gonçalo M. Tavares, escrito especificamente para Dinis Duarte, Paulo Mota e Valter Fernandes — e sempre projectado em vez de proferido, porque “Gonçalo M. Tavares é mesmo para ser lido”, frisa Victor Hugo Pontes —, e momentos em que fazem o oposto do que surge no visor. Também nem sempre seguimos os conselhos dos nossos pais, “porque achamos que nós é que sabemos ou que nós é que temos razão”. Está “quase tudo em desequilíbrio” — não deixa de ser engraçado reparar que o único elemento cénico que se equilibra na perfeição é uma mesa-espelho com três pernas... — e a pouca harmonia que os irmãos encontram vem justamente “deste lado caótico de instabilidade”.

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“Mesmo com o factor da ausência, a família está lá sempre, nunca deixamos de fazer parte dela”, sugere Victor Hugo Pontes ao PÚBLICO Nelson Garrido

Não é fácil, mas a família nunca é fácil. Saltando da mágoa para a purga, Victor Hugo Pontes e Gonçalo M. Tavares têm ainda tempo para imaginar “filhos que pertencem aos pais”, “o que é sermos pertença de alguém e sacrificarmo-nos”. O cenário é quase bíblico — quase, não; a recriação do quadro de Caravaggio torna-o bastante bíblico — e impossivelmente trágico. Ora pois, não era de luto que falávamos?

Depois da estreia no Teatro Viriato, Os Três Irmãos chegará em 2021 ao Teatro Municipal São Luiz (25 a 28 de Fevereiro) e ao Teatro Municipal do Porto – Rivoli, no âmbito do festival Dias da Dança (30 de Abril e 1 de Maio).

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