Aos encontros (in)esperados
Por mais singelas que sejam, são as histórias trocadas que furam o postal de cristal, que dão vida às paisagens, aos monumentos, às ruas. Podemos regressar inúmeras vezes ao mesmo lugar, as conversas nunca se repetem.
Sempre que me cruzo com o vídeo, não resisto a pô-lo novamente a tocar. A voz que percorria como num filme o calor da roça de Monte Café, em São Tomé, tinha agora um rosto. Leia, 19 anos, estava a cantar as músicas aprendidas no coro da igreja enquanto limpava o alpendre de casa e agora dava-nos um concerto improvisado, num sorriso que ia quebrando a timidez ao ritmo da música.
Quando penso em São Tomé volto automaticamente àquela canção, às cajamangas oferecidas por Fasta e Ana Maria da Cruz ou às conversas no bar da aldeia no ilhéu das Rolas. Se no prato está moreia frita, então é ao restaurante improvisado no quintal de Maria Lunguinha, na ilha do Sal, em Cabo Verde, que regresso. E não consigo fazer ioga ou meditação sem dar por mim na quietude de Plum Village, o maior mosteiro budista da Europa, a ouvir a gargalhada contagiante da irmã Hien Nghiem.
São quase sempre os encontros inesperados que marcam uma viagem. Por mais singelas que sejam, são as histórias trocadas que furam o postal de cristal, que dão vida às paisagens, aos monumentos, às ruas. Podemos regressar inúmeras vezes ao mesmo lugar, as conversas nunca se repetem. São uma lição de empatia, do que nos une apesar da distância e dos diferentes percursos de vida.
O Tejo que se abeira de Vila Velha de Ródão seria outro se não me tivesse cruzado com António Pinto que, por um mês, não nasceu “no meio do rio”, no ilhéu para onde a família se mudava no Verão, antes da construção das barragens. A história do linho em Janeiro de Cima não teria o mesmo significado se não tivesse ouvido as memórias de Lurdes Rodrigues enquanto o feijão branco secava aos nossos pés ou os lamentos de David Luxembourg após a tragédia dos incêndios que assolaram a região em 2017. “As pessoas reais estão aqui, estão à nossa volta e é importante cuidar destas comunidades porque são elas que nos vão ajudar, que nos vão salvar”, releio agora. Óbidos seria uma vila literária diferente sem as quadras de Natália Santos, a poeta rendeira.
Por vezes, não são trocados mais do que dois dedos de conversa. Há sempre outro lugar a visitar quando o tempo é curto de mais para o tanto que existe para conhecer, como no passeio a São Miguel a propósito do primeiro voo low cost para a ilha açoriana. Mas parece que ainda consigo ver os miúdos a tentar cozer ovos com um balde na Caldeira do Esguicho ou Luís Pires Coelho a encher garrafões junto às nascentes da freguesia das Furnas. Talvez um dia nos voltemos a encontrar ali, a beber um chá feito com a água quente que brota de uma das fontes.
Outras vezes, desenrolam-se ao ritmo da mesa e aí parece existir todo o tempo do mundo, seja no restaurante de Fernando, o único habitante da branda de Vale de Poldros, no Gerês; à mesa do cante alentejano, em Pias; na Toca da Raposa, em Ervedosa do Douro; na Casa Mil-Homens ou no Fago, em Marvão; ou no icónico Café Correia, em Vila do Bispo, encerrado no ano passado. Fecho os olhos e volto a ouvir o fado preencher as pequenas salas do Bela Vinhos e Petiscos, em Alfama, e a simpatia da proprietária, Anabela.
Talvez porque agora estejamos mais privados delas do que nunca, são as conversas, as longas, as inusitadas, as guiadas, que me dão mais saudades da estrada. São elas que tornam única cada viagem, ao outro lado do mundo, ao virar da rua, aos lugares de sempre.