Dupla irlandesa Yvonne Farrell-Shelley McNamara recebe o prémio Pritzker 2020
O “Nobel” da arquitectura distingue este ano as arquitectas irlandesas do atelier Grafton, que em 2018 foram comissárias da Bienal de Veneza.
As arquitectas irlandesas Yvonne Farrell (n. 1951) e Shelley McNamara (n. 1952), que comissariaram a Bienal de Arquitectura de Veneza de 2018, são as vencedoras do Prémio Pritzker de 2020, anunciado esta terça-feira pela Hyatt Foundation. As arquitectas do atelier Grafton sucedem ao japonês Arata Isozaki, distinguido no ano passado, numa iniciativa que vai já na sua 41.ª edição e que inclui na lista dos premiados os portugueses Álvaro Siza (1992) e Eduardo Souto de Moura (2011).
O júri do Pritzker deste ano, presidido pelo juiz americano Stephen Breyer, explicou que entre as razões para distinguir Yvonne Farrell e Shelley McNamara estão “a integridade na forma como encaram os seus projectos e a sua profissão”; a “convicção no trabalho colaborativo e na generosidade para com os colegas”, evidenciada em eventos como a já citada Bienal de Veneza; “o ilimitado compromisso com a prática de excelência na arquitectura”; e “a sua responsabilidade em nome da sustentabilidade”.
Reagindo à distinção, Yvonne Farrell, citada no mesmo comunicado desta tarde, defende que “a arquitectura pode ser descrita como uma das mais importantes e complexas actividades culturais no planeta”. “É um enorme privilégio ser-se arquitecto, e receber este prémio é a confirmação do quanto acreditamos na arquitectura”, acrescenta.
Em Portugal, Souto de Moura recebeu a notícia da atribuição do prémio à dupla irlandesa com satisfação. “São duas mulheres notáveis, e duas arquitectas notáveis”, diz o arquitecto do Estádio do Braga, lembrando que esta sua obra foi assumidamente uma inspiração para a Universidade de Engenharia e Tecnologia (UTEC) que Farrell e McNamara projectaram em Lima, no Peru. “Com uma honestidade intelectual que é rara no meio dos arquitectos, elas escreveram-me a dizer que o estádio as tinha influenciado”, diz ao PÚBLICO o Prizker português, acrescentando que conhece e gosta muito também da Universidade Luigi Bocconi (2008), que as Grafton projectaram para Milão.
Souto de Moura regista ainda o facto de terem sido Farrell e McNamara as comissárias da última Bienal de Veneza em que lhe foi atribuído o Leão de Ouro pela recuperação de um monte alentejano no complexo turístico de São Lourenço do Barrocal. “Além de tudo, são minhas amigas há muitos anos”, diz.
Conhecimento da construção
O arquitecto e professor André Tavares (também colaborador do PÚBLICO) vê igualmente na atribuição do Pritzker à dupla do Grafton o reconhecimento de uma carreira “feita com o conhecimento da construção”. “É curioso que esse saber construtivo, esse saber da arquitectura, surja depois de um grande investimento intelectual”, diz.
Se é verdade que Yvonne Farrell e Shelley McNamara conquistaram um maior reconhecimento mediático na Bienal de Veneza, em que receberam o Leão de Prata em 2012 pela exposição A arquitectura como nova geografia, e de que seis anos depois assumiram a curadoria geral, numa edição que dedicaram ao tema Free Space, André Tavares nota que elas possuem uma obra já com grande dimensão e variedade, mesmo se têm dedicado especial atenção a estabelecimentos de ensino, como os já citados em Lima e em Milão, mas também em Toulouse, França, ou na obra actualmente em construção para a London School of Economics, além de várias escolas na sua Irlanda natal.
“Na Bienal de Veneza que elas comissariaram, o que estava em causa era a capacidade de a arquitectura servir a sociedade não apenas como abrigo, mas como capacidade de transformar a paisagem, de fazer com que a maneira como construímos o nosso território responda também a desafios ecológicos e culturais que são fundamentais nos dias de hoje”, nota o também historiador e editor, que enquanto curador (com Diogo Seixas Lopes) da Trienal de Arquitectura de Lisboa em 2016 contou com a presença de Shelley McNamara no ciclo de conferências Talk, Talk, Talk, onde a arquitecta irlandesa abordou o tema A física da cultura.
“A obra delas demonstra uma racionalidade muito generosa, a capacidade de ler os programas funcionais para além dos edifícios e daquilo que eles são enquanto compartimentos com funções específicas, e de imaginar o seu ciclo de vida para além do próprio momento da construção”, acrescenta o actual programador da Garagem Sul do Centro Cultural de Belém. “As Grafton projectam edifícios para durar, e fazem com que essa durabilidade garanta à arquitectura uma dignidade e um valor que têm estado ausentes nestes últimos anos”, dominados por uma lógica financeira em que o que conta é construir de forma rápida e recuperar depressa o investimento, mesmo se isso é “altamente predador do meio ambiente”, realça.
Projectar e ensinar
Yvonne Farrell e Shelley McNamara conheceram-se na Escola de Arquitectura do University College de Dublin, e fundaram o seu atelier em 1978, dando-lhe o nome da rua onde tiveram o seu primeiro espaço de trabalho.
Em paralelo com a actividade emergente de arquitectas, continuaram a leccionar, primeiro na própria Universidade de Dublin, depois em Lausanne e em Mendrisio, na Suíça.
“Ensinar foi sempre para nós uma realidade paralela”, diz Yvonne Farrell, no comunicado do Pritzker, acrescentando que se trata de “uma maneira de passar a experiência às novas gerações, para que elas também desempenhem um papel efectivo no crescimento dessa cultura”. “É uma coisa que funciona nos dois sentidos: nós aprendemos com os estudantes, e temos a esperança de que eles também aprendam connosco.”
Nos anos 1990 e 2000, as Grafton trabalharam sobretudo na Irlanda, tendo projectado obras que se tornaram de referência, como o complexo habitacional North King Street Housing e o Instituto de Urbanismo, em Dublin, ou a Escola Médica da Universidade de Limerick. No final da primeira década do século XXI, expandiram internacionalmente a sua arquitectura com uma primeira obra em Itália, a já citada universidade em Milão (distinguida como Edifício do Ano na primeira edição do Festival de Arquitectura de Barcelona, em 2008), a que se seguiram os também aclamados projectos para o campus da UTEC, em Lima (Prémio RIBA - Royal Institute of British Architects, em 2016), e depois, em França, a Universidade Capitole e a Escola de Economia, recentemente construídas em Toulouse.
As arquitectas irlandesas foram ainda distinguidas, já no corrente ano, com a Medalha de Ouro Real do RIBA.
Com o Pritzker agora atribuído a Farrell e McNamara, sobem para cinco as mulheres distinguidas com o mais importante prémio mundial de arquitectura, depois da iraquiano-britânica Zaha Hadid (2004), da japonesa Kazuyo Sejima (atelier SANAA, com Ryüe Nishizawa, 2010) e da espanhola Carme Pigem (atelier RCR Arquitectes, 2017).
O Pritzker atribui um prémio pecuniário de 100 mil dólares (cerca de 89.500 euros) e uma medalha de bronze, mas, sobretudo, garante a presença no panteão mundial da arquitectura. Lançado em 1979 e tendo como primeiro distinguido o norte-americano Philip Johnson (1906-2005), um dos pais da arquitectura moderna, o prémio distinguiu já arquitectos como Oscar Niemeyer, Frank Gehry, Renzo Piano, Rafael Moneo, Peter Zumthor ou Alejandro Aravena.