Um dia de malabarismos para esquecer
Os líderes partidários tentaram iludir-nos com palavras graves e acusações emocionadas destinadas a conferir a solenidade do teatro clássico a uma peça previsível e de duvidosa qualidade.
O primeiro-ministro falou de “cenas patéticas”. Ana Catarina Mendes acrescentou em defesa do Governo que a crise do IVA se representou na Assembleia da República “em três actos”. Rui Rio respondeu que o Governo tinha “levado a cena uma peça do jeito: ‘Agarrem-me, senão eu demito-me’.”
É raro haver assim tanto consenso no debate político entre os dois maiores partidos do Parlamento, mas também é raro haver tantas razões para se falar de teatro como no debate sobre o Orçamento do Estado. Felizmente, para bem do país, o enredo acabou sem tragédia. Mas poucos se salvam do ónus que uma certa comédia deixou na imagem do Parlamento.
Já todos tínhamos percebido que, em causa, estava uma peça com falta de densidade dramática. Assim: todos avançaram com propostas para baixar o IVA da electricidade; mas todos depositavam uma secreta esperança e tinham um desejo velado que tais propostas fossem chumbadas.
Ninguém queria derrubar o Governo. Ninguém queria votar ao lado de adversários figadais. Nem o PSD nem o CDS queriam assumir o ónus do despesismo. O PSD fazia depender o seu plano de redução do IVA da aprovação de contrapartidas que sabia estarem condenadas pelo Bloco e o PCP. O PCP queria votar uma proposta que sabia ser inaceitável pela direita. No meio da fantasia, o Governo foi à boca de cena ameaçar com uma crise política.
Quando o remate da peça sobre a breve crise do IVA se conheceu, os líderes partidários tentaram iludir-nos com palavras graves e acusações emocionadas destinadas a conferir a solenidade do teatro clássico a uma peça previsível e de duvidosa qualidade. A descida do IVA tinha os seus méritos. A procura de uma plataforma de entendimento liderada pelo Governo era lógica, quando se sabia que só o PS estava contra o que todos defendiam.
Mas a forma como este Orçamento se discutiu, com 600 propostas de alteração a entrarem a duas horas do final do prazo, a obsessão em mostrar serviço para conquistar o troféu do mais duro contra o Governo, o ambiente de feira em que tudo se processou ou o malabarismo táctico transformaram um assunto sério numa anedota.
No final de tanto alarido, o Orçamento passou, como estava escrito nas estrelas. Agora, a única forma de conceder alguma utilidade ao processo que o aprovou é acreditar que o PS percebeu que os tempos calmos da “geringonça” acabaram e tem de ser mais aberto à negociação. E também que a oposição vai dar conta que a propensão quase histérica para botar abaixo é o resquício de uma prática que tanto fez para afastar os cidadãos da política.