Fazer ciência em português nada vale?
Carta aberta ao primeiro-ministro, António Costa, sobre o relatório de quatro investigadores estrangeiros que determinou a classificação do centro de investigação que dirijo.
Senhor primeiro-ministro, se me permite vou directo ao assunto: sim, fazer ciência em português parece que nada vale, se atendermos à fundamentação e à atitude preconceituosa plasmadas no relatório de quatro investigadores estrangeiros que determinou a classificação do centro de investigação que dirijo. Confesso-lhe que não alimentamos grandes expectativas, mas não ficaríamos bem com a nossa consciência se não tornássemos públicos os critérios de avaliação e os preconceitos a que uma unidade de investigação está sujeita.
Transcrevo, pois, alguns dos catorze parágrafos do relatório de menos de duas páginas que nos foi remetido oito meses depois da visita que fizeram ao centro:
“(…) The journal currently published by CIPES, seems to suffer from the same pathologies as all other journals hosted by other R&D Units around the country: it attracts mainly authors from Portugal, often related to the University and generally seems to promote an esoteric, inward-looking research ethos. (…) (§8);
(…) Either abandon ResPublica or try to internationalize its profile with rigorous peer-review processes and with the elimination of in-house publications. It might be a good idea to make this an English-only journal.” (n.5, §14).
Que a revista de um centro de investigação português, da Universidade Lusófona, atraia sobretudo autores portugueses, ligados à universidade, com artigos em português é para os avaliadores patológico e causa de um autocentrado e esotérico ethos. Afirmação, de resto, não sustentada e que só se compreende pela seguinte proposta: acabar com a revista, com as publicações internas (in-house) e contratar investigadores estrangeiros (n.3, §14). Ou, então, transformá-la numa revista exclusivamente em inglês (“a good idea”). E como não aceitámos esta imposição (“…a journal in Portuguese is a cornerstone of the University’s strategy”), o resultado foi “weak”. Em palavras simples: o que exigem é que publiquemos só em inglês, para nos curarmos da patologia de um esoterismo autocentrado. Ponto de vista infelizmente sufragado pela FCT.
Não queremos maçar o senhor primeiro-ministro com as considerações contraditórias e desfasadas do mini-relatório – fá-lo-emos (em inglês, note-se) em recurso para o conselho directivo da FCT, embora em carta de Julho, que não teve resposta, tenhamos alertado a presidente da FCT para estes factos. O que pretendemos é alertar para o preconceito inaceitável destes senhores relativamente ao nosso país e à língua portuguesa.
Mas o preconceito não se fica por aqui. Ele também se manifesta em relação à ética dos próprios membros do centro, como se vê neste parágrafo:
“There is some gender asymmetry within the integrated members. This asymmetry was also evident in the opening discussion, in which the responses were primarily given by the senior male members of the group” (§10).
Trata-se de um intolerável insulto que parece querer indiciar um ethos machista ao confirmarem a gravidade da assimetria de género (no total dos investigadores, integrados e colaboradores, há cerca de 60% de homens e 40% de mulheres) pelo gesto de os homens falarem antes das mulheres, vendo nisso certamente uma intencionalidade retrógrada e conservadora.
Não podemos aceitar, também neste caso, e noutros que deixaremos para o recurso, que a atitude e os critérios para nos avaliar sejam estes. E ficamos ainda mais espantados ao verificar que a política de financiamento da investigação acabe por ficar à mercê de preconceituosos investigadores estrangeiros sem qualquer intervenção da FCT. No nosso entendimento, este caso revela e indicia uma preocupante e provinciana submissão quer em relação ao radicalismo impositivo do politicamente correcto, quer em relação à menorização da língua portuguesa e ao seu uso na produção científica.
Lembramo-nos do que ouvimos, em 25.11.2019, na SIC, quando o senhor primeiro-ministro, e bem, comentou a decisão da UNESCO sobre a língua portuguesa:
“Reconhecimento desta dimensão global de uma língua (...) que tem que ter cada vez maior presença quer no domínio cultural, quer no domínio científico.”
Foi isto que ouvimos, estupefactos por constatarmos que quatro professores estrangeiros contratados pela FCT vieram a uma universidade portuguesa, ainda por cima Lusófona, considerar – erroneamente e sem qualquer fundamentação – esotéricos e patológicos os conteúdos e os colaboradores de uma revista em português e propondo como remédio a sua, e exclusiva, publicação em língua inglesa.
Nada temos contra a língua inglesa, mesmo quando, em breve, esta deixar de existir no espaço da União Europeia como língua nativa. Mas esta atitude contraria a lógica e a natureza do espaço europeu e da UE e a orientação estratégica que o senhor primeiro-ministro enunciou. E revela um lamentável provincianismo de quem acha que tudo o que vem de fora é imparcial e melhor, entregando decisões de extrema importância para o desenvolvimento do país a pessoas que provavelmente não fazem a mínima ideia do que são as nossas necessidades e desconhecem a dimensão mundial da língua portuguesa. Mas, pior do que tudo isso, é virem com preconceitos avaliar pobrezinhos de um suposto terceiro mundo que tratam as mulheres como o faziam os homens das cavernas. O colonialismo linguístico e o radicalismo do politicamente correcto são inaceitáveis e prejudiciais para o desenvolvimento do nosso país.
Senhor primeiro-ministro, isto já não é somente uma questão académica ou de gestão da ciência. Isto é também uma questão de auto-estima, de respeito por nós próprios. E consideramos que, com esta política, as Universidades não conseguirão fazer da investigação a verdadeira âncora do ensino superior, como pretende, de resto, e bem, o Governo. Aceite, Senhor Primeiro-Ministro, as nossas melhores e sinceras saudações.