O mundo novo de Trump
Foi o primeiro líder em mais de 70 anos a assumir como desígnio nacional pôr um ponto final à ordem liberal. Por não partilhar dos seus valores essenciais. Do ponto de vista internacional, este Presidente é orgulhosamente um vestefaliano iliberal.
A noite de 8 de novembro de 2016 não foi igual a todas as outras. À medida que as horas avançaram, e se foi conhecendo, pouco a pouco, o resultado dos estados decisivos na eleição presidencial norte-americana, pressentia-se que algo extraordinário se estava a passar e que nada ficaria como dantes. Primeiro, ele ganhou no Michigan, no Wisconsin e na Pensilvânia. Depois no Ohio. E até na Florida. Eram 3 ou 4 da manhã em Portugal, ainda não tinha acabado, mas já não havia volta a dar. Ao contrário do que praticamente todos acreditavam, Donald Trump era mesmo o 45.º Presidente dos Estados Unidos. Nessa madrugada, enquanto cada um tentava perceber o que tinha acabado de acontecer, Gérard Araud, o embaixador da França em Washington, tweetou: “Um mundo está a acabar diante dos nossos olhos.”
Quem quiser compreender em toda a sua profundidade o sentido da frase certeira do diplomata francês deve ler dois livros recentemente publicados. O primeiro, o Regresso da Anarquia, de Carlos Gaspar. O segundo, The Great Delusion, de John Mearsheimer. Ambos ajudam a perceber que, em rigor, o tal mundo já estava a acabar, mesmo antes da eleição de Donald Trump, muito devido à reconfiguração da distribuição de poder no sistema internacional iniciada algures na década de 2000. Simplesmente, fosse quem fosse o Presidente norte-americano, teria de gerir a rutura da continuidade unipolar em resultado da redução constante do diferencial de poder EUA/China e da crescente capacidade de intervenção das grandes potências revisionistas. Dito de forma simples: mesmo que quisesse, a América já não tinha a capacidade para suportar sozinha o fardo da manutenção da ordem que criou à sua imagem.
Trump não podia, mas também não queria. Ele foi o primeiro líder em mais de 70 anos a assumir como desígnio nacional pôr um ponto final à ordem liberal. Por não partilhar dos seus valores essenciais. Por a considerar um mau negócio. Por não estar disponível para aceitar a existência de limitações à liberdade de atuação estratégica do seu país. Por considerar que ela torna os Estados Unidos mais inseguros. Do ponto de vista internacional, este Presidente é orgulhosamente um vestefaliano iliberal.
Todos sabemos que depois da Segunda Guerra Mundial o mundo foi dividido entre a ordem americana e a soviética. Também sabemos que após o colapso da URSS e o fim da Guerra Fria a primeira foi expandida à escala global. E claro que não desconhecemos que ela foi criada a partir dos valores e interesses dos EUA, assentando no pluralismo, no multilateralismo, nas organizações internacionais universalistas (como a ONU), nas organizações de integração regional (como a CEE), nas alianças permanentes (como a NATO) e na democracia liberal como elemento legitimador das relações internacionais.
Foi todo este mundo que Donald Trump começou a desmantelar, peça a peça. E não o fez por qualquer impulso iconoclasta. Fê-lo para construir sobre as suas ruínas uma nova ordem internacional. Soberanista: feita de Estados soberanos, que não aceitam nada acima neles, em que cada um tem de tomar conta de si e não depender de terceiros, não havendo qualquer limitação à sua liberdade de ação externa. Antimultilateralista: feita de relações bilaterais, ao mesmo tempo que se esvaziam os mecanismos e as instituições multilaterais, empecilhos à capacidade de os países defenderem à vontade os seus interesses nacionais. Protecionista: feita de tarifas e guerras comerciais, pois a globalização e os grandes acordos de comércio livre prejudicaram gravemente os Estados Unidos, transferindo empresas, empregos e investimentos para “batoteiros” comerciais, como a China e o México. Não normativa: feita de relações de maximização de poder, dado que a segurança é a prioridade absoluta e só pode ser conseguida através do reforço significativo das capacidades militares, sendo o consenso normativo entre as democracias tido como um mero sonho louco de quem passou demasiado tempo a ler Kant. De “coligações de vontade”: as “alianças permanentes”, em que a coligação faz a missão, são enfraquecidas, privilegiando-se as coligações feitas a partir da missão.
A “revolução Trump” está longe de estar acabada. Não se faz um mundo novo em quatro anos. E com uma reeleição pelo meio. Talvez a obra seja finalizada depois de ganhar em novembro. Mas já muita coisa foi feita. Os EUA saíram de vários organismos e agências das Nações Unidas. Retiraram-se da Parceria Transpacífico (TPP). Congelaram a Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP). Renegociaram o acordo de comércio livre da América do Norte (NAFTA). Denunciaram o Acordo de Paris sobre o clima. Rasgaram unilateralmente o acordo multilateral sobre o programa nuclear iraniano (JCPoA). Abandonaram o tratado sobre os mísseis balísticos de alcance intermédio (INF). Puseram em causa o seu compromisso com o artigo V da NATO, dizendo que ele dependia de os aliados pagarem mais pela defesa comum. Apoiaram o “Brexit”, assim como alguns partidos europeus contrários à União Europeia. Passaram a privilegiar as relações com os Estados poderosos, como a China e a Rússia, em detrimento dos “irmãos democráticos”. Começaram várias guerras comerciais, com destaque para a que está para durar com Pequim.
Tudo isto está a acontecer, enquanto estamos entretidos a discutir o cabelo do Presidente norte-americano, ou o tom alaranjado da sua cara, ou os seus desconcertantes tweets. Donald Trump tem um projeto. Tem vindo a implementá-lo. E não está sozinho. Está acompanhado por vários líderes de outros Estados e por múltiplas forças políticas dentro de cada vez mais países, incluindo europeus. Acresce que os ventos da história, se é que tal coisa existe, sopram a seu favor.
Tinha razão Gérard Araud. No final de 2016, a ordem liberal começou a acabar diante dos nossos olhos. No seu lugar, está a nascer uma ordem vestefaliana. É o mundo novo de Trump. E não é só dele. É razão para dizer: habituem-se.
Professor associado da Universidade Nova/investigador integrado do IPRI