A magia da alimentação flexível
O ponto chave é encontrar a forma de estabelecer uma restrição calórica que encaixe nos seus horários de trabalho, na sua dinâmica familiar, na sua vida social e nas suas preferências alimentares.
A curtas semanas do Natal já ninguém tem cabeça para o discurso cliché das sobremesas saudáveis com menos açúcar, rabanadas no forno e afins. Quem inicia um processo de emagrecimento em Dezembro tem igualmente de gerir expectativas, pois no Natal, tal como em períodos de maior stress profissional, cessação tabágica, luto recente, férias de Verão e afins, não aumentar de peso é já uma vitória e deve ser celebrada como tal. Quando estão reunidas condições para que a alimentação seja mais controlada, é importante saber que, para emagrecer, não existem regras obrigatórias escritas em tábuas de pedra e que o sucesso da adesão a qualquer plano alimentar está directamente ligado à capacidade de flexibilizar o mesmo. Dando alguns exemplos práticos:
— Não tem de fazer sempre um pequeno-almoço de rei, almoço de príncipe e jantar de pobre: se acorda sem fome e prefere ficar em jejum até meio da manhã ou hora de almoço que o faça, desde que não acumule muito apetite para estas refeições e acabe a fazer uma refeição hipercalórica. É certo que, do ponto de vista metabólico, acumular mais calorias no final do dia pode não ser o ideal, mas neste como em outros aspectos que se podem discutir no emagrecimento, desde que se cumpra a restrição calórica, o objectivo será cumprido.
— Não tem de fazer refeições de três em três horas: fraccionar as refeições pode ser melhor do ponto de vista da gestão do apetite e da manutenção da massa muscular, mas se não está literalmente “para se chatear” a preparar merendas e lanchinhos para o meio da manhã e meio da tarde, não o faça. Não é consensual que fazer mais refeições tenha um impacto positivo no peso e no apetite, por isso cumpra esta recomendação se resultar melhor para o seu estilo de vida.
— Não tem (nem deve) juntar uma bolacha ou pão à fruta para não aumentar tanto a glicemia: este mito tantas vezes perpetuado em muitos planos alimentares, parte de uma premissa errada de que todos os açúcares (mono e dissacarídeos) possuem elevado índice glicémico (quando apenas a glicose o tem, ao contrário da lactose e frutose) e de que o amido presente na farinha que dá origem ao pão e às bolachas possui um índice glicémico baixo (quando na verdade é alto). Para além disso, o maior indicador da variação da glicemia de qualquer refeição é a carga glicémica, que ajusta o índice glicémico ao total de hidratos de carbono que tem uma porção normal de consumo de um determinado alimento. Isto justifica o porquê de alimentos como a melancia (que tem índice glicémico elevado) ter uma carga glicémica muito baixa (pois a melancia apenas tem 5-6% de açúcar). Como tal, esta é mais uma regra clássica que não faz sentido. Se quiser algo que atenue a subida da glicemia da fruta, não é adicionando mais hidratos de carbono (como com pão e bolachas) que o vai conseguir fazer, mas sim com mais proteína na mesma refeição (por exemplo queijo magro/queijo fresco/iogurtes hiperproteicos não açucarados).
— Não tem de comer aveia para o resto da vida: é certo que a aveia é um excelente alimento, com boas quantidades de proteína e fibra. Mas uma alimentação flexível permite perceber que a aveia tem praticamente as mesmas calorias que outros cereais mais açucarados. Hoje em dia, até assistimos ao ridículo de termos cereais açucarados “zero” com redução do seu teor de açúcar, sendo esse açúcar substituído por farinhas hidrolisadas que ainda aumentam mais a glicemia que o próprio açúcar (que seria em teoria o principal problema do açúcar). Como já vimos, aquilo que pode reduzir o impacto glicémico dos cereais é a redução do seu teor de hidratos de carbono totais e aumento do teor de fibra, por isso trocar ou misturar cereais açucarados por aveia ou palitos de fibra faz sentido. Trocá-los por flocos de milho sem açúcar, menos doces, mas com igual impacto glicémico é o pior dos dois mundos. Como tal, não é obrigado a comer papas de aveia para o resto da vida. Pode comer o seu leite com cereais de chocolate ou mel de forma ocasional, pois se ingerir as mesmas quantidades terá também as mesmas calorias e será certamente mais feliz com a sua alimentação.
— Não tem de comer sempre chocolate preto com mais 70% de cacau sempre que comer chocolate: chocolate tem de ser sinónimo de prazer e não sinónimo de saúde. É um facto que quanto maior a quantidade de cacau, maior a quantidade de flavonoides com efeito benéfico do ponto de vista cardiovascular. Ainda assim, mesmo com ingestões de 100g diárias de chocolate preto, os benefícios na redução da pressão arterial (a título de exemplo) são muito modestos, o que quer dizer que o chocolate deve cumprir o seu principal propósito: dar prazer. Por isso, se preferir chocolate de leite, ou chocolate branco que pouco cacau tem, que o faça. Desde que as quantidades sejam controladas ao ponto de não comprometer a restrição calórica, é mais um acto de liberdade e flexibilidade alimentar que o pode ajudar a estar mais feliz com a sua alimentação.
— Não tem de eliminar a manteiga da sua vida para sempre: a manteiga tem gordura saturada, gordura trans, colesterol e está longe de ser o alimento perfeito, mas tem uma grande vantagem: sabe bem e está quase umbilicalmente ligada à nossa tradição gastronómica. A meia de leite e torrada com manteiga é quase o pequeno-almoço oficial de Portugal e como tal pode ser das coisas de que é mais difícil abdicar quando se entra em “dieta”. Como elaborar um plano alimentar deve ser uma negociação de hábitos com mútuo acordo entre nutricionista e paciente, a torrada com manteiga pode perfeitamente ser incluída, havendo o compromisso de ir buscar essa gordura “extra” a outra refeição mais à frente no dia. Seja com menos azeite na confecção, com menos frutos gordos como merendas ou com a troca de lacticínios meio gordos por magros. Não se esqueça também que a famosíssima manteiga de amendoim não é muito menos calórica do que a manteiga (e mais calórica até do que a manteiga magra). E neste discurso podíamos perfeitamente substituir a manteiga por cremes de chocolate de barrar. Não são alimentos que convém consumir todos os dias, mas não tem de ficar refém de queijo fresco, queijo magro, fiambre de peru ou compotas light como recheio do pão.
Uma dieta flexível não deve ser o pretexto para ingerir açúcar, gordura e sal sem nenhum problema, com o pretexto “como cabe nos meus objectivos de calorias e macronutrientes, posso comer o que me apetece”. Mas se for para comer apenas cozidos e grelhados, cortar os fritos, os enchidos, o açúcar e o álcool, nem vale a pena ir a um nutricionista. Aliás, se for para cortar nisso tudo, nem vale a pena viver. O ponto-chave é encontrar a forma de estabelecer uma restrição calórica (único ponto essencial para o emagrecimento) que encaixe nos seus horários de trabalho, na sua dinâmica familiar, na sua vida social e nas suas preferências alimentares.
De cada vez que algum nutricionista/investigador/influencer demoniza o açúcar ou a proteína do soro do leite (whey) porque “eleva a insulina”, os adoçantes porque têm um “efeito negativo na microbiota intestinal”, a manteiga porque “tem ácidos gordos trans”, os cremes de chocolate porque “têm óleo de palma que é cancerígeno”, os hortofrutícolas não biológicos porque têm “resíduos de pesticidas”, os lacticínios e a carne porque têm “resíduos de antibióticos e hormonas”, não estão, ao contrário do que pensam, a fazer um favor à saúde pública. Estão, sim, a infernizar a relação das pessoas com a alimentação e a dificultar o seu processo de emagrecimento e melhoria da saúde, pois ao estarem tão distantes dessa pseudo-alimentação perfeita, nem sequer tentam melhorar o mínimo que seja.
Há dez anos, alguns pacientes perguntavam em consulta sobre sites/blogues interessantes onde pudessem encontrar informação credível e receitas saudáveis porque existia escassez desses conteúdos. Em 2019, existem pacientes a referir que têm de deixar de seguir algumas páginas de Facebook/Instagram e certas celebridades para que consigam ter paz de consciência na sua alimentação e não se sintam diariamente culpados pelas escolhas alimentares que fazem. Ser fundamentalista da alimentação saudável não é ser saudável.