A inteligência dos polvos envergonha muitos vertebrados: por que razão os comemos?

Os polvos são cefalópodes que conseguem enganar os seus predadores (e as suas presas) por serem mestres da camuflagem e por se adaptarem tão bem a vários ambientes. Mas por que razão este ser vivo tem uma inteligência que se destaca tanto das espécies que lhe são próximas? E por que há quem se recuse a comê-lo?

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Onde está o polvo? DR

Não há ninguém que tenha acompanhado o Mundial de Futebol de 2010, na África do Sul, de forma mais ou menos atenta que não se lembre do polvo Paul, o molusco alemão que “adivinhava” os resultados de alguns jogos. Na altura e antes dos jogos, Paul era confrontado com duas caixas com mexilhões, um dos alimentos preferidos da espécie: uma tinha a bandeira alemã estampada e outra a bandeira da selecção adversária. A caixa escolhida pelo polvo para se alimentar era interpretada como uma previsão do vencedor da partida.

Paul chegou a “prever” a vitória da Espanha na final do Mundial, acertando o resultado de nove jogos, e os seus palpites foram transmitidos em mais de 20 estações de televisão de todo o mundo. O sucesso destas “previsões” foi tal que a partir desse ano o mundo em geral (porque a comunidade científica já lá tinha chegado antes) começou a estar mais atento às capacidades cognitivas daquela espécie e a querer perceber o porquê dos polvos apresentarem uma inteligência fora do normal para um ser invertebrado.

No caso de Paul, como explica Eduardo Sampaio, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), o treinador tinha um palpite de quem ia ganhar e depois habituava-o a ir para a caixa onde estivesse representada essa equipa. “Apesar de ele não adivinhar o resultado do jogo, o feito continua a ser notável porque demonstra que é possível treinar um polvo para executar certas tarefas e é mais uma prova da sua inteligência”, explica o investigador ao PÚBLICO.

O polvo Paul no seu aquário em 2010 DR
Uma estátua de Paul erguida depois da sua morte REUTERS
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O polvo Paul no seu aquário em 2010 DR

O polvo evoluiu separadamente dos vertebrados durante cerca de 600 milhões de anos e é como uma amêijoa que perdeu a sua concha. A sua inteligência é notável, havendo mesmo quem lhes chame o “vertebrado dos invertebrados”. Actualmente, há cerca de 300 espécies identificadas deste ser marinho.

Inteligência fora do comum

Nos últimos anos, a equipa em que Eduardo Sampaio está integrado, coordenada por Rui Rosa, tem estudado os comportamentos e a fisionomia dos polvos. “Temos a tendência para pensar na inteligência animal como uma pirâmide em que nós estamos no topo e depois vai descendo para primatas, outros mamíferos, répteis. Mas neste caso temos umas ‘amêijoas’ que perderam a concha e que têm uma capacidade de lidar com o ambiente e de mudar a sua decisão conforme os desafios que o meio lhes apresenta”, diz o investigador.

Mas, afinal, que características dão ao polvo esta capacidade cognitiva superior? Sabemos que os polvos são cefalópodes e que uma das coisas que lhes permite ter uma inteligência tão diferentes dos outros (os bivalves, os mexilhões, as amêijoas, búzios ou caracóis) é o facto de terem um sistema nervoso muito mais desenvolvido e mais complexo por uma questão de necessidade: ao perderem a sua concha tiveram de arranjar forma de se adaptar ao meio ambiente em que estavam inseridos e acabaram por desenvolver mecanismos para lidar com ameaças ou para se alimentarem.

“Por exemplo, se eles estiverem a ser predados por um animal na areia fogem para a coluna de água e se estiverem a ser predados por um peixe camuflam-se junto à areia. Num documentário que vi, conseguiram filmar uma situação em que o polvo está a ser predado por um desses tubarões e envolve-se em pedras não só para bloquear o acesso do predador, mas também para não ser detectado”, conta o cientista. “O polvo acaba por usar isso em sua vantagem para conseguir fugir num momento de distracção do tubarão.”

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Onde está o polvo? DR

Já Vanessa Madeira Letria, também investigadora da FCUL, explica que, além de três corações, os polvos têm um cérebro bastante evoluído com zonas que cumprem funções parecidas com as dos vertebrados — uma zona mais alocada à memória, dois globos ópticos muito desenvolvido por causa da parte da visão e ainda uma outra particularidade: “No fundo, os polvos têm nove cérebros.” “Um na cabeça, entre os olhos, e depois ao longo de cada braço, oito no total, há um cordão nervoso que tem milhões de neurónios que funcionam de forma mais ou menos independente do cérebro, o que quer dizer que o braço pode funcionar de forma autónoma e só depois de realizar a acção é que a comunica ao cérebro “principal.”

Esta peculiaridade em concreto revelou-se muito importante para definir outro dos pontos que fazem dos polvos um ser inteligente. A espécie é “altamente treinável” para executar várias tarefas que envolvam o uso dos seus braços. 

“Podemos treinar um polvo a abrir frascos à prova de crianças e eles conseguem usar várias ferramentas, característica que normalmente é associada a uma capacidade cognitiva muito alta. Nos chimpanzés e nos primeiros humanos, o início do uso de utensílios foi fulcral para o desenvolvimento da nossa cognição”, afirma Eduardo Sampaio. Mas o que mais impressiona o investigador é que o desafio do frasco em concreto nunca lhes ia aparecer no meio ambiente. No oceano, e numa situação normal, um polvo nunca teria de abrir um frasco de vidro, mas se for instigado a isso, fá-lo na primeira tentativa.

Em vários vídeos espalhados pela Internet, vemos polvos a usar as “ferramentas” do seu meio ambiente para se protegerem de predadores. Num em particular, os polvos apanham um coco do fundo do mar e andam com ele de um lado para o outro. Quando vêem um predador nas proximidades fecham-se dentro dos cocos para protecção.

Um esguicho de tinta

Outra das características que é notável nos polvos, tal como explica Vanessa Madeira Letria​, é o facto de se conseguirem camuflar e adaptar ao meio em que estão inseridos numa questão de segundos. “A pele deles emita não só as cores, mas também a textura do material a que se estão a adaptar”, refere a investigadora. Além disso, caso a camuflagem não resulte, para os polvos há sempre um plano B (ou C): um esguicho de tinta para distrair o predador. “Se um polvo não quiser ser avistado, o mais fácil é estar completamente camuflado, mas se for apanhado desprevenido, tem mais opções”, diz a investigadora.

Dentro do seu organismo e à semelhança dos chocos e das lulas, o polvo possui uma espécie de saco com tinta, junto a um órgão que funciona como se fosse um fígado. Quando necessita, o polvo expele essa tinta que vai sendo produzida à medida que é gasta. “Eles acabam por conseguir lançar a tinta de duas formas: ou como uma espécie de cortina de tinta em que o predador fica sem ver e ele pode fugir ou de uma forma em que a tinta sai mais espessa. O predador pensa que o polvo ainda ali está porque, apesar de não o estar a ver, está a sentir qualquer coisa e nesse tempo o molusco tem tempo para fugir”, diz Vanessa Madeira Letria​, acrescentando que muitas vezes a cortina de tinta é o suficiente para retirar toda a visão ao predador.

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Eduardo Sampaio numa das suas explorações DR

Não comer polvo é uma opção para quem os admira?

Se em Portugal o polvo é dos seres marinhos mais apreciados à mesa (alguns até o comem no Natal), existem pessoas por todo o mundo que têm parado de comer este ser marinho, não porque não gostam do seu sabor, mas porque ficam a conhecer as suas capacidades cognitivas. Para Norman Kerle, um professor universitário alemão de 48 anos, a inteligência do polvo foi a grande razão que o fez parar de comer o animal, mesmo que conheça pouca gente que esteja no mesmo barco. Há dois anos, decidiu parar de comer polvo, não “do dia para a noite”, mas de forma gradual.

“Acho que não fui influenciado por ninguém, apenas me apercebi de que o polvo é um tipo de animal impressionante e que é melhor mantido vivo. Faço mergulho e o polvo está entre as criaturas mais interessantes e intrigantes que podemos encontrar debaixo de água e é geralmente muito difícil de observar, é mesmo um ponto alto do mergulho”, diz ao PÚBLICO Norman Kerle, que trabalha na Holanda.

Também Eduardo Sampaio conhece várias pessoas que não comem polvo, precisamente pelas mesmas razões, e Claire Jackman é uma delas. A britânica de 45 anos que trabalha na área das finanças conta que nunca o fez porque “o polvo é demasiado fofo para comer”. Sempre soube o quão inteligentes eles eram e que tinham emoções e sentimentos. Vários amigos meus, pelo menos cinco, já não os comiam e desde que comecei a mergulhar que percebi que acabamos por estabelecer uma conexão com o animal. Além disso, ninguém da minha família come polvo porque são criaturas incríveis”, conta Claire Jackman.

Já Vanessa Madeira Letria afirma que nas visitas que faz com crianças e jovens ao laboratório para ver polvos, muitos acabam o dia a dizer que “nunca mais os vão comer”.

De facto, a própria União Europeia tem mecanismos para proteger não só os polvos, mas todos os cefalópodes. Estes seres são os únicos invertebrados que, pela sua inteligência, são protegidos pela directiva da União Europeia de 2010 “sobre a protecção de animais utilizados para fins científicos”. Segundo o que se lê nesta directiva, os cefalópodes foram incluídos nesta lei “uma vez que existem provas científicas da sua capacidade de sentir dor, sofrimento, angústia e danos duradouros”. A directiva incentiva os cientistas a não usar métodos que causem sofrimento aos animais e que provoquem a sua morte desnecessária.

A equipa em que o Eduardo Sampaio e Vanessa Madeira Letria estão inseridos está a desenvolver um projecto em forma de site com a National Geographic de partilha de informação, fotografias e vídeos de exploração subaquáticas onde observam os cefalópodes em acção. E aí todos podemos testemunhar quão inteligentes eles são

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