Fêmea de polvo de águas profundas chocou os ovos durante quase quatro anos e meio

A resistência deste molusco bate de longe o recorde oficial de todas as espécies ovíparas conhecidas, concluem os cientistas que observaram o seu comportamento, no seu habitat natural, de 2007 a 2011.

A fêmea de polvo e os seus ovos em Maio de 2007
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A fêmea de polvo e os seus ovos em Maio de 2007 MBARI
A fêmea de polvo em Maio de 2009
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A fêmea de polvo em Maio de 2009 MBARI
A fêmea de polvo em Setembro de 2011, pouco antes de os ovos eclodirem
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A fêmea de polvo em Setembro de 2011, pouco antes de os ovos eclodirem MBARI
As cápsulas dos ovos após a eclosão
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As cápsulas dos ovos após a eclosão MBARI

Nas águas frias e escuras de uma zona designada Midwater 1, agarrada a uma saliência na rocha a cerca de 1400 metros de profundidade – e perto do fundo cheio de sedimentos do canhão –, um polvo fêmea da espécie Graneledone boreopacifica começa, pacientemente, a chocar os seus ovos. E vai fazê-lo durante… 53 meses. O feito foi descrito esta quarta-feira na revista PLoS ONE.

A observação é tanto mais espectacular que, segundo relatam Bruce Robison, do Instituto de Investigação do Aquário da Baía de Monterey (MBARI) e colegas, ao longo dos quase quatro anos e meio que durou a monitorização do polvo e da sua ninhada, eles nunca viram esta mãe abandonar os ovos – ou sequer alimentar-se.

“Os polvos passam tipicamente por um único ciclo reprodutivo e morrem a seguir”, escrevem estes cientistas no seu artigo. E tomam conta dos seus ovos até eclodirem. Sabia-se que as espécies de águas pouco profundas chocam os ovos durante um a três meses, mas nunca tinha sido possível observar uma espécie de águas profundas. E o que os cientistas descobriram agora sugere que, nos grandes fundos oceânicos, as coisas não se passam da mesma forma que perto da superfície.

A “convivência” da equipa com o polvo começou em Abril de 2007, quando os cientistas, que realizavam explorações periódicas na área de Midwater 1 com um ROV (veículo operado remotamente) pertencente ao MBARI, avistaram “um polvo solitário (…) a dirigir-se lentamente para o substrato rochoso”, escrevem ainda.

Quando regressaram ao local (via ROV), 38 dias mais tarde, em Maio de 2007, encontraram o mesmo polvo (facilmente reconhecível graças às suas características cicatrizes), agarrado à parede rochosa, não muito longe do fundo, a cuidar de uma ninhada de ovos.

"Regressámos 18 vezes ao local ao longo dos quatro anos e meio que se seguiram”, escrevem ainda os autores. “E cada vez que voltávamos, encontrávamos o mesmo polvo, agarrado à parede rochosa vertical, com os braços enrolados em torno dos seus ovos para os cobrir. O crescimento contínuo dos ovos indicava que se tratava sempre da mesma ninhada.”

Super-mãe das profundezas

A equipa atribuiu a esta super-mãe polvo de 21 centímetros de diâmetro (não contando com os braços) a alcunha de “octomom” (octo-mamã – em inglês, polvo diz-se octopus), disse ao PÚBLICO Brad Seibel, co-autor do artigo, da Universidade de Rhode Island. “Pode não ser o nome mais imaginativo do mundo, mas descreve bem” esta fêmea, acrescenta.

Apesar das vibrações e da luz emitidas pelo veículo telecomandado, a octomom nunca pareceu incomodada pela presença do ROV. E por duas vezes, invertendo o fluxo de água do veículo, os cientistas conseguiram mesmo levantar suavemente a membrana (ou manto) entre dois dos seus braços para ver alguns dos ovos e medir o seu tamanho. 

“O ROV ficava normalmente a entre um e dois metros de distância do polvo”, diz-nos ainda Seibel. “O seu braço mecânico aproximava-se por vezes até a uns poucos centímetros do animal, quer para lhe oferecer comida, quer para atirar água para cima dele, durante as tentativas de levantar a membrana para melhor vermos os ovos. Mas sempre tivemos o cuidado de incomodar o animal o mínimo possível.”

A fêmea nunca demonstrou, durante as múltiplas observações, qualquer interesse pelos pequenos caranguejos ou camarões que o braço do ROV lhe oferecia. Só quando algum destes animais se aproximava demasiado do ninho, da sua livre vontade, é que o polvo, mais uma vez para proteger os ovos, o afastava com os braços.

“Embora ocasionalmente mudasse ligeiramente de posição, ou desenrolasse e levantasse um ou dois braços, a fêmea permanecia sempre centrada na sua ninhada”, escrevem ainda os cientistas.

A tarefa materna não consistia apenas em vigiar os ovos, afugentando eventuais predadores. Os ovos de polvo também precisam de muito oxigénio para crescer, o que significa que a progenitora teve de manter constantemente à sua volta um fluxo de água fresca, impedindo que os ovos ficassem cobertos de sedimentos e outros detritos.

A dada altura, explica o MBARI em comunicado, foi possível distinguir os pequenos polvos-bebés no interior das cápsulas translúcidas. E entretanto, a mãe-polvo ia ficando “cada vez mais magra e com a pele cada vez mais solta e pálida”, salienta o mesmo documento.

Desafio evolutivo

Por que é que a gestação foi tão longa? Os autores fazem notar que, a 1400 metros de profundidade, a temperatura da água cai para uns gélidos 3 graus Celsius – e que, nessas condições, o desenvolvimento dos ovos de invertebrados torna-se mais lento.

Mas essa não é a única razão, argumentam. A capacidade de a mãe-polvo suportar um período de gestação tão longo é “um desafio evolutivo” essencial para garantir a sobrevivência da sua prole. A este propósito, aliás, o terceiro co-autor do presente artigo – Jeffrey Drazen, da Universidade de Honolulu, Havai – mostrara há uns dez anos (num artigo publicado na revista Journal of Molluscan Studies) que os polvos da espécie Graneledone boreopacifica são, de todas as espécies de polvos conhecidas, os que nascem mais desenvolvidos e de maior tamanho. Ora, com tanto tempo para se desenvolverem, os polvos recém-nascidos já são de facto polvos miniatura, e são por isso capazes de caçar pequenas presas e de subsistir pelos seus próprios meios – o que lhes confere efectivamente um grande potencial de sobrevivência.

“Estes resultados surpreendentes enfatizam a importância dos cuidados parentais na produção de prole bem desenvolvida, capaz de lidar com os rigores do habitat do mar profundo”, disse Robison à PLoS One.

A última vez que os cientistas viram a octomom foi em Setembro de 2011. Quando regressaram, um mês mais tarde, ela tinha desaparecido – e dos ovos só restavam as cápsulas, que no fim da gestação tinham 1,5 centímetros de largura e pouco mais de três centimetros de comprimento. Os cientistas contaram-nas e estimam que a ninhada continha cerca de 160 ovos.  O que terá acontecido à progenitora? “O destino final de uma fêmea de polvo após chocar os seus ovos é inevitavelmente a morte”, escrevem.

Embora se trate da observação de um único polvo, a equipa pensa que longos períodos de gestação como este poderão ser frequentes nas águas oceânicas profundas. E que esta estratégia funciona, apesar de ser no mínimo violenta para a progenitora, uma vez que a Graneledone boreopacifica é hoje uma das espécies mais comuns de polvos no Pacífico nordeste.

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