Uma aparição no Nos Alive, Grace Jones de seu nome
Terá sido um dos dias menos concorridos na nossa memória do Nos Alive, mas foi um dia para a história. Não pelo concerto irrepreensível dos Vampire Weekend, não certamente pelos ilusionistas Greta Von Fleet. Sexta-feira foi o dia da grande surpresa. O dia em que reencontrámos Grace Jones.
Não chegámos no tempo certo, ou seja, no início, porque a segunda coisa mais interessante do dia estava a acontecer no palco principal. Quando deixámos os Vampire Weekend, Ezra Koenig oferecia a sua voz límpida e delicada ao Jokerman que Dylan gravou em 1983 com o seu timbre rasgado e nasalado. Estava quase a chegar ao fim o concerto irrepreensível da banda que, seis anos depois de actuar, no mesmo festival, numa tenda lotada, se apresentava como cabeça de cartaz do segundo dia do Nos Alive, tocando os clássicos e as novidades do recente Father of the Bride sob um globo terrestre que é boa representação da universalidade que pretende para a sua música.
Saímos então do concerto dos Vampire Weekend e, atravessando o recinto com a maior ligeireza de que temos memória em dias de Nos Alive, dada a lotação bem abaixo do que tem sido norma no festival, entrámos na tenda gigante que cobre o Palco Sagres, dito o maior dos secundários. Baterista, percussionista, baixista, teclista, guitarrista, duas vozes nos coros em dualidade cromática, uma coberta de azul, outra de vermelho. Juntos, tocam música de uma fisicalidade envolvente, quase agressiva, um disco-funk que se entranha nos corpos que dançam. Juntos, dão cenário sonoro àquela em que todos os olhares se concentram. Tem rosto e braços decorados com motivos de tinta branca, veste uns calções de látex e tem a cabeça coberta com cota de malha. Canta, incentiva, provoca: “Warm”, diz ela; “Leatherette!”, responde o público. Grace Jones, 71 anos, deixou marca indelével no Nos Alive. Foi dela, entre aqueles a que assistimos, o melhor concerto do segundo dia do festival.
Horas antes, numa sexta-feira sem destaques óbvios em cartaz e sem aquele chamariz popular que é habitualmente sinónimo de enchente, avançámos pelo caminho aberto até às primeiras filas para ver o melífluo Perry Farrell apresentar a sua mais recente extravagância made in L.A. no Passeio Marítimo de Algés – dança lasciva das mulheres e homem do coro, passagens por Jane's Addiction e Porno For Pyros incluídos.
A seguir a Farrell, entusiasmámo-nos tanto com o rock'n'roll de vistas largas dos Primal Scream, liderados por um Bobby Gillespie em impecável fato rosa, que, quando demos por ela, já tínhamos dançado o balanço Stones de Jailbird e o neo-gospel de Movin’ on up, já tínhamos batido o pé com o stomp contagiante de Rocks e já tínhamos sido sacudidos pelo som rugoso do rock'n'roll cibernético de Swastika eyes e Kill all hippies.
Quando demos por ela, dizíamos, já tínhamos lamentado, ao som lisérgico de Loaded, o facto de a banda estar a tocar enquanto o sol brilhava ainda no céu – o óptimo concerto que deram pedia noite escura. Resultado, quando aterrámos na tenda em que outro veterano distinto actuava perante uma plateia repleta, já o dito veterano, Johnny Marr, preparava a despedida. Não perdemos tudo: ganhámos uma belíssima versão de There's a light that never goes out, o clássico dos Smiths. Fruímos esse pedaço maior da história da pop liberto do seu fantasma actual, o génio que lhe escreveu a letra, Morrissey, por estes dias um patético tribuno de xenofobia e teorias da conspiração avulsas – ou seja, bem vistas as coisas, ganhámos bastante.
A expansiva Beth Ditto
No que diz respeito ao palco principal, o segundo dia do festival encerraria já de madrugada com a expansiva Beth Ditto a dar voz ao rock com pé na dança dos seus Gossip e a lamentar não falar português enquanto muito falava e muitos beijos oferecia ao público resistente – e nós pensávamos no bom que poderia ter sido o concerto dos Primal Scream naquele cenário, àquela hora.
Para trás, tinha ficado, no Palco Nos Clubbing, Plutónio a encorpar o seu hip-hop com banda completa (e de peso), banda que se mostrou tão hábil no balanço forte quanto nas alusões a semba ou funaná que o rapper do Bairro da Cruz Vermelha inclui na sua música – óptima a versão de África minha, dueto com Bonga na versão de estúdio: “Sei que a maioria de vocês não são africanos, mas sei também que a música não tem raça”, apresentou.
Ainda cantava Plutónio e cantava com ele o muito público reunido, que parecia ter os versos de todas as canções na ponta da língua, quando um som familiar emergiu dos lados do palco principal. A familiaridade era, porém, uma ilusão, uma malfeitoria danada. Tratava-se dos Greta Van Fleet, nova coqueluche do rock americano. Uma banda com um problema muito específico.
Como sabemos, é impossível criar do nada. Toda a música se constrói sobre os ombros dos que a criaram anteriormente. Como sabemos, todos os músicos têm as suas referências, que exibem e aproveitam para a sua criatividade da forma que julgam mais apropriada. Acontece que os Greta Van Fleet, muito jovem quarteto formado por três irmãos (vocalista, baixista e guitarrista) a que se junta o amigo baterista, não fazem exactamente isso. Dos agudos da voz e respectivos trejeitos vocais aos padrões rítmicos da bateria e aos solos espasmódicos da guitarra, os Greta Van Fleet são, literalmente, uns Led Zeppelin (com uns pozinhos de AC/DC aqui, um pouco de histrionismo do hard-rock dos 80s ali) em que Robert Plant dá ares de Frodo, em que Heartbreaker e Whole lotta love são o início e o fim do universo conhecido e em que a noção de subtileza é substituída pela vontade de fazer tudo, e muito, a toda a hora e de uma forma que roça o exibicionismo.
É certo que os Led Zeppelin pilharam criteriosamente gente como Willie Dixon ou os Spirit para se inventarem como portento rock'n'roll inigualável, mas os Greta Van Fleet são toda uma outra coisa. São, como dizem os saudosos, “o rock dos bons velhos tempos”, neste caso imaculadamente preservado em âmbar. Parece mesmo verdadeiro, só lhe falta respirar e ganhar vida própria. Não foi com eles que sentimos o sangue a latejar, que vimos vida a sério a acontecer.
Vampire Weekend, passado e presente
“Vai parecer que o dizemos só por dizer, mas alguns dos nossos melhores concertos foram em Portugal”, exclamará Ezra Koenig já na parte final do concerto, antes de anunciar a versão de Jokerman. Já dissera o quão feliz estava pelo regresso, já percebêramos que, depois dos anos de pausa, os Vampire Weekend, transformados após a saída de um dos fundadores, o teclista e produtor Rostam Batmanglij, conseguem conciliar de forma feliz e coerente aquilo que eram no passado, mais crus e directos, e aquilo que são agora, banda alargada a sete elementos que se aventura por arremedos nas fronteiras do jazz-rock, divagações que os Grateful Dead não desdenhariam ou marulhar caribenho – o globo sobre eles no palco, como aquele que faz capa em Father of the Bride, o álbum editado este ano, serve como metáfora feliz da sua música.
Há algo dos Talking Heads na forma como se apropriam de outras linguagens para as incorporar em contexto rock – as suas célebres guitarras bailarinas da África ocidental, por exemplo –, mas têm perfeita consciência do seu tempo e do seu contexto e têm em Ezra Koenig um compositor e letrista de identidade vincada. São lúdicos e profundos, são capazes de delicadeza, como em Sunflower, de sentido comunal, como em This life, e de êxtase punk, como em Cousins. Têm uma mão cheia de clássicos, como Cape Cod Kwassa Kwassa, A-Punk ou Oxford comma, e conjugam habilmente a discografia que primeiro os celebrizou – Vampire Weekend e Contra –, com as criações recentes, prolongando temas ou colando alguns em micro medleys. No Nos Alive, mostraram que o novo álbum, longo e diversificado musicalmente, não é corte com o passado. É a continuação de uma história que se vai fazendo rica – quanto a isso, o palco não engana. Saímos de Jokerman crentes de que tínhamos visto o melhor concerto da noite. Esperava-nos, porém, uma surpresa maior.
Grace Jones, inspirada e inspiradora
Mais de 20 anos passaram desde os pouco recordados primeiros concertos de Grace Jones em Portugal. Daí para cá, muito mudou. Reabilitada e recuperada enquanto ícone da música e cultura populares, Grace Jones lotou a tenda do Palco Sagres e fez inteiramente por merecer a atenção que tantos lhe dedicaram. Metamorfoseou-se em cada canção, ora surgindo de longo turbante com as cores do seu país, a Jamaica, ora em fato negro e peculiar chapéu domingueiro – “Vamos à igreja?”, perguntou, e cantaria depois o espiritual Amazing grace agarrada a um varão, que a igreja de Grace Jones não é como as demais. Pôs chapéu cintilante como bola de espelhos, que brilhou ainda mais sob um feixe de luz, qual entertainer de um Cotton Club futurista, e trouxe um igualmente cintilante arco de hula-hoop que fez rodar nos quadris durante os sete, oito, nove minutos que demorou a empolgada e empolgante despedida com Slave to the rhythm. Era o final memorável de um concerto em que o impacto visual e o poder musical se entrelaçaram numa mesma matéria.
Foi provocadora e desconcertante – despediu-se baixando o corpete para revelar o peito nu, só porque sim (e porque não?) –, mas de uma forma que se ligou intimamente à natureza daquelas canções, interpretadas daquela forma tão viva e lasciva.
Tivemos Love is the drug, o original dos Roxy Music, tivéramos antes My jamaican. Tivemos o funk sintético da escola de Prince a ligar-se ao Nightclubbing que ela adoptou de Iggy Pop e David Bowie. Tivemos um bailarino de corpo nu pintado com os mesmos padrões que adornavam o rosto de Grace Jones a desafiar a gravidade no varão, tivemo-la a descer até ao público para cumprimentar todas as mãos que se esticaram para ela. “Não se apressem, aproveitem o vosso tempo”, disse sorridente, enquanto avançava entre os admiradores.
Grace Jones regressou. Ou Grace Jones nunca foi embora. Tanto faz. Interessa que a vimos e que a vimos assim, inspirada e inspiradora. No Nos Alive, a noite de sexta foi dela. O festival termina este sábado com Smashing Pumpkins, Chemical Brothers, Thom Yorke e Idles.