Para onde olharam elas? — Portugal visto por mulheres fotógrafas estrangeiras
Quando em Portugal se estabelecia um regime político autoritário na década de 1930, a fotografia experimentava um fulgor excepcional, saindo dos estúdios e das mãos dos "profissionais". Entre os inúmeros fotógrafos estrangeiros que aterraram em Portugal durante o Estado Novo, contam-se muitas mulheres. Percurso breve pelo trabalho de mulheres fotógrafas estrangeiras que captaram Portugal entre 1930 e 1975.
Quando Susan Lowndes (1907-1993) veio viver para Portugal, em 1939, notou que não existia um bom guia artístico e cultural do país em língua inglesa e que a última edição do conhecido guia da editora Murray era já de 1887. Mas foi só em 1946 que a escritora e mulher do embaixador britânico em Portugal, Ann Bridge, desafiou a minha avó inglesa para escreverem um livro em conjunto e partirem à descoberta do país onde eram “estrangeiras”. The Selective Traveller in Portugal, publicado em 1949, teve um enorme sucesso, com inúmeras edições nas décadas seguintes. Em 1954, no seu livro Portugal and Madeira, Sacheverell Sitwell escrevia na introdução: “Nenhum viajante inglês poderá visitar Portugal sem ter este livro à mão e qualquer escritor inglês que escreva sobre Portugal terá de estar em dívida constante para com elas.”
Ann Bridge deixou Portugal pouco depois da publicação daquele guia. A minha avó Susan não regressou a Londres e ficou a viver no Monte Estoril até ao fim da vida e a escrever sobre cultura, arquitectura, arte e religião em Portugal (além de um livro sobre gastronomia portuguesa e espanhola, que era motivo de riso na família, pois nunca soube cozinhar). Lembro-me bem de a ver sentada na sua secretária a escrever à máquina, mas nunca a vi com uma câmara fotográfica.
As duas inglesas percorreram Portugal de automóvel, em 1946, e visitaram centenas de igrejas, monumentos e museus. Sabemos que também levaram uma câmara, mas nas legendas das imagens reproduzidas no livro nada remete para a sua autoria, delas próprias ou de outros. De onde vinham então as imagens que ilustravam The Selective Traveller in Portugal? Na página de agradecimentos, encontram-se os nomes dos responsáveis das instituições que lhes cederam imagens, mas não os autores das fotografias em si. O primeiro a ser reconhecido foi António Porto d’Assa Castelo Branco, da secção fotográfica do SNI (Secretariado Nacional de Informação), “uma colecção única que forneceu muitas das fotografias para este livro” e, como sabemos, para tantos outros livros publicados nas décadas seguintes. Entre os vários directores de museus reconhecidos — afinal, este era um guia artístico e cultural —, estava também Vasco Rebelo Valente, director do Museu Soares dos Reis, do Porto, que lhes deu “muitas fotografias”. Apenas dois nomes de privados surgem como “tendo, amavelmente cedido fotografias” — W.B. Rumann, Esq. e uma mulher, Mrs. Scoville, muito provavelmente uma referência a Orlena Scoville, a norte-americana que comprara, e restaurara, o Palácio da Bacalhôa, em Azeitão, em 1936.
Na década de 1950, o panorama editorial de livros para estrangeiros, sobre Portugal e colónias, mudou radicalmente. Foi um período em que as instituições culturais e turísticas do Estado Novo investiram especialmente na divulgação internacional do país, através da encomenda de livros de viagem escritos, e por vezes fotografados, por estrangeiros. A investigadora Susana S. Martins, da Universidade Nova de Lisboa, tem trabalhado sobre o tema, analisando o papel fundamental que a fotografia teve na produção de um “Portugal” não só para “inglês” ver, mas para “francês”, “holandês”, “norte-americano” ou “suíço” verem. As agências do Estado possuíam, classificavam e disponibilizavam as fotografias do Portugal - um Portugal “do Minho a Timor” - que se queria mostrar. O lápis azul da censura não rasurava só palavras, mas também obliterava imagens.
Foram muitas as mulheres estrangeiras que, como a minha avó, escreveram sobre Portugal no século XX, mas foram menos aquelas que centraram na fotografia a sua relação criativa com o país. E menos ainda as que fizeram livros fotográficos ou exposições individuais. Um levantamento exaustivo está por fazer, mas são vários os autores que já contribuíram com a sua investigação para esta genealogia. Como já notou Teresa Mendes Flores, o livro de António Sena, de 1998, História da Imagem Fotográfica em Portugal 1839-1997, menciona quatro mulheres (entre 16 fotógrafos estrangeiros, no total): Monck, Varda, Weiss e Lavenson [“Fotografia e Género”, Comunicação e Sociedade, 2017, eds. Maria da Luz Correia e Carla Cerqueira)]. Já em 2007, Ângela Camila Castelo-Branco, em “Os ‘olhares fotográficos’ dos estrangeiros”, escreveu sobre os muitos fotógrafos de além-fronteiras que retrataram Portugal durante este período e referiu, além destas quatro mulheres, algumas outras. O projecto de investigação coordenado por Filomena Serra, sobre “Fotografia Impressa. Imagem e Propaganda em Portugal (1934-1974)”, está a trazer à luz e a aprofundar outros estudos de caso.
Portugal, 1930
Margaret Monck (1911-1991), por exemplo, está representada com duas obras no Centro Português de Fotografia, no Porto: o retrato de uma mulher com um cesto de flores na cabeça; e um homem, num cais, ao lado de duas gaiolas com pássaros, imagem que já esteve exposta no Museu de Évora, em 2005, na exposição O Olhar do Outro. Filha de um vice-rei da Índia colonial britânica, aos dez anos estava a fotografar o Taj Mahal em Agra com o seu “caixote” Brownie e, estava na casa dos 20, os bairros de Londres, pobres, onde não vivia. Fez um projecto fotográfico sobre o East End e outro sobre as comunidades de emigrantes na capital britânica, na década de 1930. Terá fotografado em Portugal durante esta década, pois, com o início da II Guerra e a maternidade, deixou de se dedicar à fotografia.
Sobre Bernice Kolko (1905-1970), nada encontrámos por escrito. Apenas sabemos que a fotógrafa polaca naturalizada norte-americana, judia, terá passado por Portugal porque existem “provas” fotográficas da sua passagem. As fotografias que Kolko fez à sua amiga Frida Kahlo no contexto de um projecto sobre mulheres mexicanas, no início da década de 1950, estiveram expostas em Berlim, até Janeiro de 2019, na Willy Brandt Haus. A pintora mexicana, tornada icónica nas últimas décadas e, nos últimos meses, protagonista de várias exposições — Berlim, Porto, Londres —, onde dominou a fotografia, mais do que a pintura, foi a protagonista de Frida Kahlo, os Rostos do México. Mas a exposição berlinense incluiu também fotografias realizadas por Kolko noutros países, como um conjunto de provas fotográficas originais, juntas numa só moldura, e legendadas como “Portugal. 25 fotografias sem data”. Mais nada. Nem cronologias nem qualquer referência às razões da sua passagem.
Entre as imagens apresentadas, reconhecemos a Feira da Ladra, em Lisboa, à volta do Panteão, ruas quase todas com pessoas. Mulheres de avental e lenço, com fardos à cabeça, são várias, todas elas a trabalhar em mercados de rua ou como varinas, com as canastras de peixe como marcas identitárias. Noutras, surge um rancho folclórico. Quando e porque é que passou por Portugal? Na sua biografia, apenas encontrámos referências a uma viagem na Europa em 1932. Será a Lisboa fotografada por Kolko de 1932? Ou já depois da II Guerra, onde Kolko participou como fotógrafa profissional ao serviço do exército norte-americano, na Women’s Army Corps?
Liberdade e mobilidade
Quando o fim da II Guerra voltou a permitir a mobilidade, multiplicaram-se as viagens de estrangeiros em Portugal e também as de mulheres fotógrafas, profissão que nalguns países se tornara mais acessível. Em 1945 ou 1946, logo a seguir ao fim do conflito, uma fotógrafa profissional passou por Portugal. Imagens dessa estadia de Toni Frissell (1907-1988) são, por exemplo, uma “cena de rua em Alfama”, “as mulheres da Nazaré” ou uma encenação de “uma noite de fados”, a fadista de olhos fechados a cantar, dois guitarristas e um homem, o galã de cigarro na boca e o único a olhar para a câmara. Como tantas mulheres fotógrafas (e fotógrafos) da sua geração, não teve uma educação formal na área, mas fez da fotografia a sua profissão. Nasceu em Nova Iorque, onde cedo se tornou aprendiz de nomes já consagrados como Cecil Beaton e Edward Steichen (o responsável pela secção fotográfica do MoMa que organizou a famosa exposição The Family of Man, em 1955), e começou a trabalhar como fotógrafa de moda em grandes revistas, como a Vogue ou a Harper’s Bazaar.
Com ambições de fazer um outro tipo de imagens, quando os EUA entraram na II Guerra, Frissell ofereceu-se como fotógrafa da Cruz Vermelha americana, da Women’s Army Corps (tal como Bernice Kolko) e de uma força especial de soldados negros americanos. “Estava a ficar tão frustrada com as modas” — afirmou — “que tive de provar a mim própria que era capaz de fazer um verdadeiro trabalho de reportagem”. A esta vontade de passar de assuntos mundanos para assuntos “sérios” não é alheia a diferença de género muito marcante na imprensa da época: temas que interessavam a todos, como a guerra e a política, eram “masculinos”, enquanto o lugar das mulheres autoras — na escrita ou na fotografia — tendia a ser remetido para assuntos “femininos”, considerados acessórios e menores.
Algumas das milhares de fotografias que fez de mulheres, de uniforme, a trabalhar em contexto de guerra assim como de soldados afro-americanos foram usadas numa campanha mediática oficial. O objectivo era contrariar a percepção pública negativa norte-americana de que mulheres, por um lado, e homens negros, por outro, não tinham capacidade para estar na frente de batalha e, pelo contrário, valorizar o seu papel na defesa dos EUA. Em Portugal, além das imagens encenadas sobre o “povo” sem nome próprio, Frissell fotografou uma outra mulher norte-americana, Gertrude Legendre (1902-2000), no momento em que esta fotografava uns barcos em Lisboa. Legendre, funcionária do Office of Strategic Services, a entidade que deu depois origem à CIA, era membro do Women’s Army Corps, que Frissell tinha acompanhado com a sua câmara fotográfica. Foi enviada primeiro para Londres e depois para Paris. Capturada pelos alemães em França foi interrogada e feita prisioneira de guerra. Conseguiu fugir e sobreviver ao fim do conflito. Em 1945 ou 1946, Gertrude Legendre estava também em Lisboa e — tal como testemunha Frissell — a olhar para o rio de câmara fotográfica na mão.
De regresso aos Estados Unidos, Toni Frissell voltou às revistas de moda e mundanas e, em 1953, fotografou tanto a festa de casamento de Jacqueline Bouvier com John F. Kennedy para a Harper’s Bazaar, como um Winston Churchill com a condecoração que a Rainha de Inglaterra acabara de lhe atribuir. Em 1994 saiu a sua biografia — Toni Frissell. Photographs 1933-1967 — com o apoio da Biblioteca do Congresso em Washington, onde se encontra depositado o seu espólio de milhares de imagens e correspondência.
A multiplicação de lentes femininas
Inge Morath (1923-2002), fotógrafa austríaca que estudou em Berlim e que, mais tarde, se naturalizou norte-americana ao casar com o dramaturgo Arthur Miller, também fotografou em Portugal. Entrou na agência Magnum em 1953 e logo em 1956 fez uma icónica fotografia do Cais das Colunas, em Lisboa. Segundo Ângela Camila Castelo-Branco, é provável que Morath tenha acompanhado Henri Cartier-Bresson na sua vinda a Portugal ainda antes, em 1954, pois na altura trabalhava como sua assistente. Foi publicada em 2018, pela Prestel, a sua biografia, Inge Morath: Magnum Legacy, assinada pela professora de História da Universidade de Nova Iorque, Linda Gordon.
Agnès Varda (1928-), a realizadora e fotógrafa belga radicada em França, é outra das mulheres estrangeiras que fotografou Portugal na década de 1950. É dela a imagem de Maria do Alívio a caminhar, descalça e vestida de negro, numa rua da Póvoa de Varzim em 1956. Até recentemente, só reconhecíamos Sophia Loren no cartaz, rasgado, no muro. Mas um casal britânico foi à procura da identidade da rapariga de 16 anos que chamou a atenção de Varda, encontraram-na, e acabaram a fazer um documentário sobre a Póvoa de Varzim dos anos 1950.
Menos conhecida é Virginia Watland, a norte-americana que, algures na década de 1950, passou por Lisboa e fotografou a Rua da Glória (mais uma imagem de uma mulher a carregar pesos à cabeça). Por seu lado, a fotógrafa suíça Sabine Weiss (1924-) esteve em Portugal em 1954 e 1956, onde fotografou, por exemplo, o interior de uma igreja, onde apenas se vêem os vultos das mulheres ajoelhadas e cobertas de negro, e uma menina, distraída e de branco, a interromper a missa para interpelar a mãe. O Centre Pompidou, em Paris, dedicou, recentemente uma exposição retrospectiva a Weiss.
O casal de fotógrafos ingleses Grace Robertson e Thurston Hopkins (ele fotografou Amália Rodrigues em 1950) exemplifica o caso dos muitos casais que partilharam práticas artísticas ou intelectuais. Já na década de 1960, duas fotógrafas profissionais, norte-americanas, vieram a Portugal. Em 1962, Alma Lavenson (1897-1989) esteve em Portugal e na Madeira. A “espiral” — uma das suas mais icónicas fotografias feitas em Portugal, jogando com a luz, a forma e a textura de uma escadaria em Tomar — encontra-se na colecção do Los Angeles County Museum of Art (LACMA). Em 1965 foi a vez de a fotojornalista Esther Bubley (1921-1998) fotografar Portugal a cores, ao contrário de todas as anteriores, que o fizeram a preto e branco. Tal como Dorothea Lange (que em 2018 foi objecto de exposições retrospectivas em Londres e Paris) na década de 1940, Bubley trabalhara para a Farm Security Administration (FSA) e o Office of War Administration (OWI) na constituição de um documentário visual da vida americana.
Estas duas últimas fotógrafas estiveram presentes na exposição comissariada, em 2005, por Jorge Calado, no Centro Cultural Calouste Gulbenkian de Paris, e na Galeria Fidelidade-Mundial Chiado 8, em Lisboa, Portugal Visto por Artistas Estrangeiros, com fotografias da Coleção Caixa Geral de Depósitos. Em 2009, Jorge Calado também comissariou, na Gulbenkian de Paris, uma exposição sobre mulheres fotógrafas, Au féminin. Women Photographing Women, 1849-2009, onde se encontram Inge Morath e Esther Bubley, mas não com as suas imagens de Portugal. De “Portugal” enquanto tema fotográfico, Calado apenas incluiu as fotografias de Maria Lamas, a autora de As Mulheres do Meu País (1848-50), sobre a qual já existem vários trabalhos, mas ainda não foi objecto de uma grande exposição que faça jus à sua obra fotográfica.
Livros e fotografia
Portugal. Wharf of Europe de Elizabeth Colman foi publicado em Nova Iorque em 1944 e patrocinado pela Casa de Portugal daquela cidade norte-americana. Como explica o investigador e coleccionador Vasco Ribeiro, este é um livro-reportagem dominado por 79 fotografias a preto e branco. Num texto que será publicado em breve na Antologia da Fotografia Impressa e Propaganda do Estado Novo, coordenada por Filomena Serra, Ribeiro nota ainda como as mulheres e as crianças, de norte a sul do país, protagonizam este Portugal visual. Colman nasceu em Munique em 1909 e estudou Línguas e Literaturas Modernas e Jornalismo em Munique e em Berlim, mas a guerra levou-a a outras paragens. Primeiro a Suíça, depois Portugal, em 1940, onde esteve quase um ano com o marido e, finalmente, em 1941, os Estados Unidos, quando se instalou em Nova Iorque. Fotógrafa freelancer, além do livro sobre Portugal, publicou Chinatown, USA, em 1946, com imagens dos bairros chineses de Manhattan e de São Francisco, e um livro sobre o Rio de Janeiro. O seu espólio está no Bard College, lugar onde leccionou e onde também se encontra parte do espólio de uma das mais conhecidas mulheres judias emigradas nos EUA, Hannah Arendt, que também passou por Lisboa.
Várias décadas depois, em 1971, uma outra fotógrafa estrangeira publicou um livro fotográfico sobre um jovem pescador de Peniche. A Fisherboy of Portugal foi “escrito e fotografado” por Ingeborg Lippmann. A norte-americana nascida em Berlim fez um estudo “etnográfico”, escrito e visual, de Peniche através do quotidiano de um menino-pescador, Joaquim António, de 13 anos. O livro integrava uma série destinada a crianças e jovens que acompanhava, com fotografias e texto, a vida de jovens em vários lugares do mundo, e Lippmann já fotografara para o livro sobre a Islândia, Asgeir of Iceland, publicado em 1970. Em 2012, António Araújo e Ademar Vala Marques escreveram sobre A Fisherboy of Portugal, no blogue Malomil. Foram a Peniche à procura do fisherboy do livro de Lippmann e encontraram-no. Afinal, o rapaz não se tornara pescador, mas continuara ligado ao mar: ingressara na Marinha, saíra de Peniche, regressara e era então responsável pelas piscinas locais.
Mas o projecto fotográfico sobre a pesca é apenas uma ínfima parte do trabalho de escrita e de fotografia de Lippmann. A reforma agrária após o 25 de Abril foi um dos seus projectos fotográficos sobre Portugal, mas enquanto correspondente do jornal The New York Times fez inúmeras outras reportagens — escritas e visuais. Sobre Angola e Moçambique, no período pós-independência ou, por exemplo, sobre a Irmandade Muçulmana no Cairo ou a guerra civil libanesa. O espólio (português, angolano e moçambicano) da fotojornalista do Times está depositado na Fundação Mário Soares, em Lisboa, e já foi objecto de uma pequena exposição em 2012. Ainda em tratamento, este conjunto fotográfico e documental também se insere no âmbito de outros arquivos históricos reunidos e preservados por esta Fundação sobre as independências das ex-colónias portuguesas (muitos deles já classificados e divulgados no site Casa Comum).
Agora que a Fundação Mário Soares está num processo de redefinição, importa assegurar que a preciosa obra de Lippmann seja preservada e disponibilizada. O processo de doação do seu espólio à fundação contou com o apoio das suas amigas e testamenteiras Martha de La Cal, correspondente da revista Time em Portugal durante mais de 40 anos, onde ficou até à sua morte em 2011, e Marvine Henrietta Howe, jornalista norte-americana especializada em assuntos políticos que foi correspondente do The New York Times em Portugal entre 1962-1971 e 1975-76, quando também foi correspondente em Angola. Marvine Howe vive hoje nos EUA, na Virgínia, e trabalha agora sobre o Norte de África, mas ainda tem a sua casa em Portugal, em Oeiras, onde passa largas temporadas. Depois de vários anos a trabalhar em Portugal para o The New York Times, o jornal nomeou-a como correspondente para o Brasil. Nessa altura, contou ao P2, passou o seu apartamento alugado no Dafundo para a sua amiga Ingeborg.
Uma análise das escolhas feitas por Ingeborg Lippmann enquanto fotojornalista em Moçambique revela-nos que deu especial destaque às mulheres guerrilheiras da Frelimo e às sessões de informação sobre a emancipação das mulheres organizadas pela combatente Geraldina Mwitu, de Mueda, a grupos de mulheres locais. Em Portugal, Lippmann também já concedera uma particular atenção às mulheres portuguesas a trabalhar no campo, no contexto da Reforma Agrária. Não serão estas escolhas fotográficas indissociáveis do facto de ser uma mulher atrás da lente? Em conversa com o P2, Marvine Howe lembra que nessa época os fotojornalistas homens prestavam pouca atenção aos assuntos relacionados com as condições e direitos das mulheres africanas durante a fase de libertação e que isso pode ajudar a explicar o interesse de Ingeborg em suprir tal vazio. Howe também revelou a paixão de Ingeborg por animais africanos e o seu trabalho fotográfico sobre a fauna de Moçambique ou África do Sul, sobretudo elefantes.
Uma aristocrata dinamarquesa entre a Madeira e Lisboa
Sonia Varvara Hasselbalch, baronesa de Heyd, fotógrafa profissional, nascida a 16 de Abril de 1920 na Dinamarca, é mais um caso de uma mulher que fez de “Portugal” um dos seus temas. Ao contrário de quase todas as outras, Varvara, de nome artístico, não esteve apenas de passagem, mas aqui viveu durante longos anos. Esta estada teve dois principais resultados fotográficos: um livro sobre a Madeira, em 1955, e uma grande exposição fotográfica, Portugal Visto por Varvara, no início da década de 1970.
Por ser uma mulher muito alta, chamavam-na “girafa”. O seu apurado sentido de humor revela-se nas entrevistas que deu, na exuberância da sua casa, repleta de objectos, em Copenhaga, como no facto de ilustrar o seu cartão profissional de “fotógrafa” com duas cabeças de girafa. Varvara usava máquinas fotográficas da melhor qualidade. A sua primeira experiência profissional com a fotografia foi em 1938, no estúdio da conhecida fotógrafa austríaca Dora Kallmus, que tanto fotografou Gustav Klimt como Josephine Baker, Coco Chanel ou Pablo Picasso entre muitos outros nomes das artes, letras e moda do século XX. Em 2018, o Museu Leopold, em Viena, organizou uma exposição sobre Kallmus — Make me look beautiful, Madame D’Ora.
Depois de criar nome em Viena, Dora abriu um estúdio em Paris, o D’Ora, com clientes do mundo da moda e da alta sociedade. Mas a guerra interrompeu-lhe o projecto. Judia alemã, Dora Kallmus viu os seus negativos serem destruídos durante o conflito e correu risco de vida. Neste contexto, Varvara viu-se obrigada a regressar à Dinamarca, onde abriu o seu próprio estúdio no palacete de família, em 1943, e, mais tarde, quando casou com um inglês, teve outros estúdios em Londres. O divórcio, em 1951, levou-a à Madeira, lugar escolhido pela sua mãe, aristocrata e cavaleira, para passar longos períodos. Pensava lá ficar durante seis meses, mas acabou por ficar vários anos. Foi durante a estadia madeirense que começou a fotografar a cores, deixando de lado o retrato de estúdio, que vinha cultivando até então.
Madeira e Portugal Visto por Varvara
Logo em 1951, Varvara conheceu Jorge Felner da Costa, do SNI, e o resultado deste encontro foi o livro sobre a Madeira publicado em 1955, em três línguas, francês, inglês e alemão: Madère. Texte e Photographies de Varvara. Fazia parte de uma colecção de livros fotográficos sobre cidades ou países, onde o livro intitulado Portugal fora escrito e fotografado por Frederic P. Marjay, autor de inúmeros títulos sobre Portugal, mas também sobre Angola e Moçambique.
Que outras mulheres estrangeiras fotografaram a Madeira? Miss Mildred Cossart, por exemplo (referida por Anne Martina Emonts num artigo sobre imagens de mulheres madeirenses em livros de viagem), publicou as suas fotografias no livro escrito por W. H. Koebel, em 1909, mas o seu nome apenas se encontra nas legendas. Tendo em conta, no entanto, a quantidade de estrangeiros que passaram e viveram na Madeira é muito provável que outras fotógrafas também aqui tenham trabalhado.
Poderíamos pensar no Madeira, da dinamarquesa, ao lado do Nazaré (1958) ou do Algarve (1965) de Artur Pastor (Artur Pastor, coord. Luís Pavão (Lisboa: Arquivo Municipal de Fotografia, 2014), ou mesmo do icónico Lisboa, Cidade Triste e Alegre de Victor Palla e Costa Martins, objecto de uma exposição recente no Museu da Cidade, em Lisboa? Todos são livros onde a imagem, mais do que o texto, é protagonista, e todos se concentram numa cidade ou região geográfica. O próprio Felner da Costa publicou em 1967 um livro com fotografias sobre Fátima, destinado a um público estrangeiro.
Após o casamento com um editor suíço, Varvara foi viver para Lisboa e montou um laboratório fotográfico em casa, num palacete à Graça. Foi também a relação de Varvara com o SNI que lhe permitiu cumprir o seu desejo de fotografar Belém, a partir do céu. Disponibilizaram-lhe um avião com um piloto para que pudesse fazer fotografias aéreas de Lisboa.
A relação fotográfica com Portugal culminou numa grande exposição, de mais de 400 fotografias — Portugal Visto por Varvara — resultado de três anos de viagens pelo país, como se explica no catálogo, não nas “estradas principais” ou nos “caminhos conhecidos”, mas antes no “coração do país””. O próprio título revela tratar-se de uma visão muito individual e específica — Varvara não faz apenas imagens mas também assina o texto. A exposição foi inaugurada primeiro em Copenhaga, em 1970, na Academia Real de Arte, Charlottenborg; passou depois para o Centro Lume, no Rio de Janeiro; e, finalmente, em 1972, abriu ao público no Palácio Foz, em Lisboa. A imagem gráfica da exposição era um galo de Barcelos com uma máquina fotográfica no bico.
Felner da Costa, autor do prefácio, começa por descrever Varvara como “um fotógrafo profissional no mais dignificante sentido da palavra” que, apesar de ter nascido na Dinamarca, tinha uma “alma” inesperadamente portuguesa. O uso do masculino — Varvara é “fotógrafo” e não “fotógrafa” — era uma forma, mesmo que inconsciente, de a valorizar. O visitante, segundo Felner, não ia ver uma exposição de arte fotográfica, mas sim “conhecer e aprender a amar Portugal”. O “milagre de Varvara” era ter conseguido fazer o “retrato total onde os portugueses reconhecem um bocadinho de si”. O catálogo publicado no Rio de Janeiro também tinha claras intenções turísticas, e o patrocínio que a TAP deu à exposição foi prova disso. Dando o seu apoio a “esta admirável exposição de fotografias duma grande artista dinamarquesa”, a TAP assumia-se, ela própria, como uma “permanente fotografia de Portugal no céu azul dos grandes espaços”.
O conteúdo desta exposição foi doado ao Arquivo Municipal de Lisboa-Fotográfico. A 1 de Março de 1994, o PÚBLICO noticiou esse depósito de cerca de “450 imagens” da “fotógrafa que viveu em Portugal entre 1954 e a década de 70” doadas pela própria ao “novo Arquivo Fotográfico de Lisboa”. Em todo este processo, o papel de Luís Pavão e de Luísa Costa Dias, então responsável pelo Arquivo, foi fundamental. Umas semanas depois, o mesmo jornal publicou o resultado de uma breve conversa com a “baronesa fotógrafa que fixou Portugal” (PÚBLICO, 18 de Março de 1994). O próprio arquivo aproveitou a visita de Varvara na altura da doação oficial do espólio para a entrevistar e tomar notas sobre a sua biografia.
Varvara não foi apenas uma mulher que fotografou, mas alguém que fez da fotografia instrumento de trabalho e de remuneração, com estúdio aberto e cartão de fotógrafa profissional. Uma diferença relevante em relação a outras mulheres fotógrafas, como a que esteve recentemente exposta no Arquivo Municipal, Helena Corrêa de Barros, é que Varvara teve consciência da relevância que o seu trabalho poderia ter no contexto português, tendo ela própria feito uma doação ao Arquivo Fotográfico.
Talvez não seja por acaso que as duas mulheres fotógrafas estrangeiras que mais tempo viveram em Portugal — Ingeborg Lippman e Varvara Heyd — sejam aquelas que, por iniciativa própria, legaram o seu trabalho a instituições portuguesas. Ambas eram profissionais e remuneradas pelo seu trabalho fotográfico, e não amadoras, algo que servia de validação pública da obra e afectava o modo como as próprias mulheres valorizavam a sua prática.
O Portugal das não-portuguesas
É mais difícil fazer a história de mulheres do que de homens, sobretudo porque os traços documentais sobre os seus percursos tendem a estar menos acessíveis, menos classificados, menos arquivados em lugares públicos e menos estudados. Onde estão estas e outras fotografias? Foram feitas por acaso, por mulheres que viajavam sempre com uma câmara fotográfica ou faziam parte de encomendas profissionais? Foram reproduzidas em livros ou jornais? Terão sido acompanhadas de textos e legendas? Como é que os itinerários de várias destas mulheres fotógrafas se cruzaram com a história do nazismo alemão, da II Guerra Mundial, e com o facto de Portugal se ter tornado um lugar de passagem de tantos judeus perseguidos, a caminho dos Estados Unidos? Qual o envolvimento necessário com as entidades oficiais do país autoritário para poder tornar pública uma visão sobre Portugal? Que relações tiveram em Portugal, com outros estrangeiros ou com portugueses? Que outras mulheres fotógrafas estrangeiras haverá nas legendas de fotografias de livros de viagens, nos agradecimentos iniciais ou em espólios desconhecidos em arquivos públicos e privados? O que podemos concluir do facto de terem sido mais as mulheres estrangeiras a fotografar Portugal do que as próprias mulheres portuguesas?
A grande fotógrafa portuguesa do Portugal do século XX, a escritora e feminista Maria Lamas, tinha um claro interesse pelas mulheres portuguesas, a especificidade da sua situação, do seu trabalho, da sua discriminação. Mas será que podemos afirmar o mesmo em relação às fotógrafas estrangeiras? Se a ideia da especificidade de um olhar feminino pode ser questionável, podemos, no entanto, afirmar que algumas destas mulheres fotógrafas estavam mais atentas às condições de vida, direitos e emancipação das mulheres. E que os lugares históricos que puderam ocupar determinaram aquilo que viram, e como o fizeram, tal como aquilo que não viram. Mais inquestionáveis são as discriminações dos olhares posteriores, da construção histórica, que não viram aquilo que não estavam preparados para ver.
Uma das fotógrafas mais extraordinárias deste período, a nova-iorquina Vivian Maier (1926-2009), ama de profissão, foi protagonista recente de mais uma exposição, desta vez em Berlim, na Willy Brandt Haus, além de já ter sido objecto de um documentário, À Procura de Vivian Maier. Só passou a ser conhecida quando, depois da sua morte, as malas com os seus pertences foram parar às mãos de alguém que tornou visível o seu labor. A obra desta fotógrafa que nunca divulgou o seu trabalho em vida e que só um mero acaso a colocou ao lado de outros reputados fotógrafos do século XX exemplifica bem os percursos criativos ou intelectuais de muitas mulheres até um passado recente.
A invisibilidade da fotografia feminina
Historicamente, as mulheres artistas, escritoras ou fotógrafas do passado (muitas mais do que aquelas que imaginaríamos à partida) trabalharam com as limitações indissociáveis ao seu género. Mas estas limitações não afectaram apenas a sua educação, o seu percurso profissional ou a sua mobilidade. Mais poderosos, porque mais invisíveis e naturalizados, foram os mecanismos que fizeram com que, por serem mulheres, fossem menos conhecidas e reconhecidas, menos classificadas, expostas e estudadas por museus, universidades ou arquivos, e menos escolhidas pelas múltiplas formas de constituir os cânones. Os modos de reconhecimento e consagração no campo artístico são indissociáveis dos contextos históricos em que se decide quem e o que é que tem “qualidade” e merece “ficar para a história”.
Não chega acrescentar mulheres aos cânones masculinos. É necessário desconstruir os mecanismos que levaram a que elas não tivessem sido incluídas neles. No passado, mas também no presente. A obra de muitos homens também poderá ter sido esquecida por uma multiplicidade de razões. Mas nunca por ter sido feita por “homens”. No entanto, a invisibilidade histórica de muitas mulheres, indissociável da sua identidade feminina, está a ser profundamente revista. Uma muito maior consciência das discriminações de género do passado — também na esfera artística, cultural e intelectual —, por parte de quem hoje em dia faz investigação e organiza exposições, tem trazido a público inúmeros casos de mulheres fotógrafas dos séculos XIX e XX que eram desconhecidas tanto do grande público como de especialistas.
Desde há pelo menos cinco anos, temos assistido a uma proliferação de exposições históricas, individuais e colectivas, sobre mulheres fotógrafas, em todo o mundo. Em 2015, dois dos principais museus parisienses acolheram a exposição Qui a peur de femmes photographes, 1839-1945. Os exemplos de exposições nos últimos meses são inúmeros: em Londres, as imagens que Norah Lyle-Smyth (1874-1963), fotógrafa e feminista, fez das sufragistas do East End londrino; na National Portrait Gallery, exibem-se ainda os quase 90 retratos de mulheres britânicas eminentes fotografados pela francesa Mayotte Magnus (Illuminating Women, até 24 Março de 2019). Já em 1977, tinham estado expostos no mesmo museu naquela que fora a maior exposição de “mulheres” alguma vez realizada naquela instituição; em Itália, perto de Florença, a exposição Female Identity through the images of five Italian Photographers, 1965-1985 (Centro Pecci, Prato); em Berlim, a austríaca Inge Morath, da agência Magnum, que passou por Lisboa na década de 1950, foi uma das fotógrafas expostas na f³-freiraum für fotografie, a mostra #womenphotographer.
A proliferação de exposições temporárias de mulheres fotógrafas nos últimos anos, a sua valorização em espólios de arquivos e museus e a multiplicação de estudos e publicações têm desafiado os cânones da história da fotografia, uma história cada vez mais rica, múltipla e objecto de novas abordagens.