Catarina Martins lamenta saída de militantes, mas pouco fala sobre o tema
A existência de críticos do actual rumo do BE não é nova. Já na última convenção do partido os militantes expressaram o seu desconforto.
Foi sem grandes comentários, e até cortando a conversa, que Catarina Martins reagiu nesta quarta-feira ao anúncio da saída de 26 militantes do Bloco de Esquerda. “Lamentamos sempre [as saídas do partido]. As críticas não foram sequer acompanhadas [por todas] as pessoas que estiveram juntas na mesma moção [documento crítico apresentado na convenção]”, respondeu a coordenadora bloquista quando questionada pelos jornalistas sobre a saída de militantes e sobre se se revê em algumas críticas de que o partido está a desviar-se demasiado do projecto original.
“Tenho a certeza absoluta de que nos vamos continuar a encontrar nas lutas comuns em que nos encontrámos até hoje”, rematou Catarina Martins, em declarações no Parlamento e recusando mais perguntas.
Na terça-feira, foram 26 os militantes que bateram com a porta, apontando muitas razões numa extensa carta: “institucionalização” do partido; “jogo da comunicação na sua forma burguesa”; falta de “pensamento crítico”; “tacticismo de decisões”; hostilização da divergência interna”; entre outras.
O relato de Tiago Braga
Tiago Braga, 31 anos, é um dos subscritores da missiva. Começou a militar no BE há pouco mais de 10 anos, foi como activista dos direitos LGBT que se aproximou do partido, mas hoje está desiludido. “O BE foi uma força política criada para ser uma alternativa. E neste momento não é”, diz ao PÚBLICO por telefone.
Defende que "a esquerda ou avança para um projecto que seja realmente revolucionário ou, então, continua neste projecto paliativo que não resolve problema nenhum. Pelo contrário, continua a aumentar a desigualdade social, a exclusão”.
Em 2015, quando se começou a desenhar aquela que viria a ser a actual solução governativa (assente em acordos firmados entre o PS, o BE e o PCP), Tiago Braga diz ter ficado logo desconfiado: “Obviamente já se sabia que, ao aceitar esta forma de governação, seria necessário fazer cedências.” Questionou-se: “Como é que se vai defender temas bandeira quando o partido que está no poder, no Governo, pensa de forma diferente? É impossível. O BE acaba por perder essa identidade. Quando deixa de haver discussão internamente sobre isso, então já está tudo perdido”, diz, acrescentando que “não faz qualquer sentido” a “existência” do BE, tendo em conta aquele que era o “projecto original”.
Dá como exemplo o tema da renegociação da dívida: “É um dos temas bandeira do BE, sempre foi. Até vir esta ‘geringonça’. Hoje se se fala em renegociação da dívida à Catarina Martins e companhia, elas fogem a sete pés. E não deixam espaço para debate, hostilizam militantes”, continua, garantindo que no BE o pensamento diferente ou “crítico” deixou de ser bem-vindo, sendo antes “completamente hostilizado internamente”. A razão? “Querem mostrar que são um partido coeso. E para mostrar essa coesão vale tudo. Por esse motivo, o BE deixou de me representar”, nota, insistindo se tornou “um partido institucional, com todas as decisões” tomadas em “Lisboa, esquecendo por completo os militantes de base, os activistas locais”.
Tiago Braga garante que vai continuar empenhado no activismo LGBT. E que também irá continuar noutras lutas políticas – a forma como tal acontecerá está em aberto: “Falar num novo partido parece-me um pouco prematuro neste momento, na certeza porém que vamos continuar a nossa luta. Com os nossos meios, claro, para a implementação de uma sociedade, de um projecto revolucionário socialista. Começar de novo, como diz a carta”, afirma, deixando em aberto que “existem muitas formas de luta” e que “a criação de um novo partido é uma delas”.
Os críticos da convenção
A existência de críticos do actual rumo do BE não é nova. Foi em 2015, na sequência das eleições legislativas, que o cenário de o BE fazer parte de uma solução governativa se tornou uma possibilidade. Os passos nesse sentido foram dados, o BE firmou um acordo com o PS, o PCP fez o mesmo, criando-se aquela que viria a ser conhecida como a “geringonça”.
Muitas questões começaram logo, nessa altura, a inquietar os espíritos mais rebeldes do Bloco. Como iria o partido apoiar um Governo do PS, quando bloquistas e socialistas tinham tantas divergências sobre as questões europeias? Sobre os tratados europeus, sobre a dívida e a necessidade, ou não, de reestruturá-la? Sobre a obediência ou desobediência a Bruxelas?
Sempre houve, no partido, quem não visse com bons olhos a aproximação do BE ao Governo e ao poder. Sempre houve círculos para quem essa proximidade iria implicar cedências programáticas e iria institucionalizar o partido.
Esta questão foi também aflorada na última convenção do partido. Num artigo com o título A Decepção dos Revolucionários, o PÚBLICO contava que, para os críticos da direcção e da aliança com o Governo PS, o BE se institucionalizou, se “social-democratizou”, abandonou a sua matriz de esquerda radical.
“Hoje estamos mais fracos”, disse naquela convenção, em Novembro, Inês Ribeiro Santos, subscritora da moção M. “A radicalidade do Bloco perdeu-se entre a sede de mediatismo e o trabalho burocrático e parlamentar, confundindo-se os meios com os fins, seguindo sem estratégia clara (...) dentro de uma bolha partidária com paredes cada vez mais grossas, fortalecidas por um encantamento de aproximação do poder, pela arrogância de quem se acha sempre certo e pelo sectarismo de quem se recusa a dialogar dentro de casa mas que abre as portas ao centro”. Já nessa altura a militante acusava a direcção de falta de democracia interna.
Outro crítico, Américo Campos, também criticava a ala que lidera actualmente os destinos do BE, acusando-a de estar “mais preocupada com a institucionalização do Bloco de Esquerda e obcecada por lugares, cargos e empregos, objectivos egoístas e pequeno-burgueses".
Notícia actualizada às 18h23, com declarações de Tiago Braga, um dos militantes que abandonou o BE
Notícia alterada às 9h45. Onde se lia decisão passou a ler-se moção.