O cimento do poder não colou o BE
Por mais soft que esteja o discurso dos dirigentes, a verdade é que o cimento do poder não colou as tendências do partido
A diversidade de opiniões, de posições e mesmo de opção sobre a linha e a estratégia política dentro de um mesmo partido é normal em democracia. É assim em Portugal no PS, no PSD, no CDS e também no Bloco de Esquerda. Essa é uma das conclusões que se podem tirar da XI Convenção do BE, que decorreu no fim-de-semana em Lisboa.
O discurso anti-sistema e de contrapoder está atenuado na atitude dos principais dirigentes bloquistas. As críticas à União Europeia são em tom mais suave e matizadas pela perspectiva explícita que a direcção do partido tem de ampliar a sua capacidade de influenciar o poder executivo e legislativo no próximo ciclo eleitoral. A experiência de três anos de partilha do poder, devido ao acordo parlamentar que estabeleceu com o PS — assim como o PCP e o PEV — para afastar o PSD e o CDS do Governo e levar o líder socialista, António Costa, à chefia do Conselho de Ministros, deu ao BE uma perspectiva pragmática da política que ficou visível nesta convenção.
Por mais soft que esteja o discurso dos dirigentes, a verdade é que o cimento do poder não colou as tendências do partido. Ao contrário do PCP, em cujo último congresso, em 2016, foram inexistentes as críticas à direcção e aos acordos parlamentares com o PS, a oposição interna fez-se ouvir no palco do Pavilhão do Casal Vistoso. Embora com resultados pouco expressivos nas votações (elegeram dez dos 80 membros da Mesa Nacional), os críticos da direcção organizaram-se em duas moções alternativas e saíram a terreiro em defesa do “velho” Bloco de Esquerda.
Para o Governo
Ficou claro durante a XI Convenção que o BE quer aumentar o seu peso político e olha com atenção máxima para o próximo ciclo eleitoral. Logo na abertura dos trabalhos, a líder, Catarina Martins, anunciou que a eurodeputada Marisa Matias será de novo cabeça de lista nas europeias. Caberia a José Manuel Pureza garantir que o BE quer aumentar o único mandato conseguido nas últimas europeias em que teve apenas 4,56% dos votos.
Mas foram as legislativas que dominaram as intervenções. E aqui foi transparente a ambição. Joana Mortágua assumiu explicitamente que o BE quer ter mais de 10% dos votos e José Soeiro garantiu: “Queremos ganhar, estamos preparados para ganhar.” Coube, porém, a Mariana Mortágua subir ontem ao palco para desfazer o objectivo que até aí tinha permanecido em silêncio nos discursos dos dirigentes: “Perguntam-nos se queremos ser governo? Sim, queremos ser governo. Perguntam-nos se vamos ser governo? Estamos prontos, camaradas, estamos prontos.”
Pouco depois, Catarina Martins, ao fechar os trabalhos, diria: “Temos a certeza de que alcançaremos a força para ser parte do governo quando o povo quiser.”
As condições em que o acordo de governação com o PS pode ser feito foram assumidas por Catarina Martins, quer no encerramento quer na abertura. Fê-lo, no sábado, ao afirmar a necessidade de combater o voto útil à esquerda e de evitar a maioria absoluta do PS. Lembrando o acordo de 2015, Catarina Martins garantiu: “A política mudou porque o PS não teve maioria absoluta e porque cresceu a força da esquerda. Lembrar 2015 é aprender essa lição. Morreu o voto útil, renasceu a possibilidade de o povo impor o respeito.” O combate à maioria absoluta do PS voltaria a ser apontado como objectivo por Jorge Costa e Cecília Honório de manhã.
A líder fez também questão de afirmar quais os conteúdos e os limites de um futuro acordo com o PS. Logo na abertura, Catarina Martins enunciou os três “desafios colossais” que têm de ser cumpridos nesta legislatura: a reforma da legislação laboral no sentido do combate à precariedade; a taxação das rendas da energia; a lei de bases da saúde; e o investimento em transportes públicos.
No encerramento, a coordenadora foi explícita em estabelecer a defesa da universalidade do Estado social e o combate a uma visão assistencialista do papel do Estado como centro de qualquer negociação com o PS. Referiu cinco áreas de combate: Serviço Nacional de Saúde; demografia; alterações climáticas; controlo público da banca e da energia; e qualidade da democracia.
Bastante matizado — e deixando a defesa da reestruturação da dívida apenas na moção de estratégia, tanto mais que Portugal saiu do Procedimento por Défice Excessivo e se aproxima do défice zero —, o discurso crítico ao perfil político-ideológico da União Europeia não deixou de estar presente como bandeira eleitoral. “A urgência é revogar o Tratado Orçamental”, proclamou Catarina Martins no encerramento. Mas logo ao início da tarde de sábado, Marisa Matias tinha garantido que o programa eleitoral do BE “é incompatível com o Tratado Orçamental”. Pouco depois, foi a vez de Luís Fazenda defender o fim das “grilhetas do Tratado Orçamental” e do programa neoliberal da Comissão Europeia e do Eurogrupo. E Joana Mortágua afirmou: “O PS disse ao país que era possível virar a página da austeridade e cumprir as metas do Tratado Orçamental, mas é precisamente essa promessa que é hoje o colete-de-forças da ‘geringonça’.”
O contrapoder
Há, contudo, no BE quem não aspire a ser governo e mantenha a defesa da cultura de contrapoder e a ideia de partido radical e revolucionário, dizendo-o alto e bom som na convenção.
Foi o que fez Américo Campos, subscritor da moção C. Defendeu que a direcção “está mais preocupada com a institucionalização do Bloco de Esquerda e obcecada por lugares, cargos e empregos, objectivos egoístas e pequeno-burgueses”. Ou Inês Ribeiro Santos, subscritora da moção M, garantindo que “a radicalidade do Bloco” se perdeu e que o partido está posicionado “num espectro político centrista e recuado, face àquilo que é a génese do Bloco”, defendendo que o BE “necessita de se afirmar como uma alternativa às políticas liberais” e não se confundir “com uma muleta de um qualquer Governo”.
Mateus Sadock, subscritor da mesma moção, foi mais longe na expressão do seu desagrado: “Vivemos das migalhas que o PS nos dá.” Acusando mesmo a direcção de estar a “normalizar cada vez mais o sistema da contra-revolução” e adoptar uma “linha reformista”, deixando de pôr “em causa a democracia burguesa” e abandonando a luta pela “transformação radical da sociedade”. Directo, Sadock defendeu: “O Bloco deve ser um partido de ruptura com o sistema. Só assim não estamos condenados ao triste destino dos partidos sociais-democratas.”