Como as bolas paradas mexem com o jogo
Na 21.ª jornada da Liga portuguesa, 43,5% dos golos nasceram de esquemas tácticos, um valor em linha com o registado no Mundial 2018.
Quando, no início da temporada, Jürgen Klopp confirmou que o Liverpool tinha contratado os serviços de Thomas Gronnemark, terão sido aos milhares os adeptos de futebol que se interrogaram: “Quem?”. O dinamarquês, que não trabalha a tempo inteiro em Anfield Road, é o detentor do recorde do mais longo lançamento do mundo e foi recrutado justamente para optimizar o desempenho colectivo nos lançamentos de linha lateral. Mais um degrau na evolução do jogo e mais um atestado da importância que as bolas paradas assumem na actualidade.
A mais recente jornada da Liga portuguesa pode servir de rampa de lançamento para o tema: dos 23 golos marcados na 21.ª ronda da prova, dez foram obtidos na sequência de bolas paradas, cinco dos quais apontados pelo Benfica na goleada imposta ao Nacional. A anatomia desses lances também permite ilustrar a variedade de movimentos decisivos (no total, foram duas grandes penalidades, dois livres directos, três indirectos, mais dois pontapés de canto e um lançamento lateral). Fazendo as contas, concluímos que 43,5% dos golos decorreram de bolas paradas, uma percentagem que vai de encontro aos valores debitados no Campeonato do Mundo de 2018. Na Rússia, 69 dos 169 golos marcados resultaram de esquemas tácticos, ou seja, 41%.
Nunca como hoje este capítulo específico (e há muitos treinadores que o elevam a quinto momento do jogo, a par dos quatro tradicionais) foi levado tão ao detalhe, mas não deixa de ser curioso constatar que técnicos como Maurizio Sarri tenham exponenciado a sua notoriedade por, para além de excelentes estrategas, se terem dedicado exaustivamente às bolas paradas. Mesmo que difiram as versões sobre o célebre manual que o italiano criou ainda nos tempos em que orientava o modesto Sorrento – há quem fale num guia com 33 esquemas tácticos, há quem fale em 38.
Que vantagens trazem, então, as bolas paradas para quem ataca? A primeira tem a ver com o tempo de que dispõe o jogador que repõe a bola em jogo, já que sofre menos pressão tendo em conta que o adversário tem de respeitar uma distância mínima. A segunda prende-se com a possibilidade de alocar para junto da baliza contrária jogadores com habilidades específicas (cabeceadores exímios, por exemplo) e colocá-los em pontos estratégicos. A terceira, mas não forçosamente a menos relevante, relaciona-se com a eliminação da necessidade de ter o controlo da bola para ferir o adversário.
Este conjunto de virtualidades, porém, só produzirá resultados se devidamente operacionalizado. E essa operacionalização só floresce através da repetição, das horas de treino, da mecanização de movimentos. Eleger elementos que unicamente se destinam a atrair marcações para libertar um ou mais colegas para a finalização (e aqui os denominados bloqueios também desempenham um papel estratégico) e determinar que espaço concreto é que cada um deverá ocupar é uma preocupação do treinador. Uma preocupação que muitas vezes já é orientada para aproveitar as fragilidades da organização adversária.
Os pontapés de canto são, a esse respeito, um maná de bons exemplos desta troca de argumentos entre quem defende e quem ataca. Se são batidos directamente para a área ou de cobrança curta, uma opção que força a reorganização de toda a linha defensiva do rival; se são apontados com pé fechado (gerando um efeito para dentro) ou pé aberto (efeito para fora); se se dispõem mais ou menos jogadores à cabeça da área, para as segundas bolas; se se privilegia o primeiro ou o segundo poste; se se baseiam num alinhamento vertical, numa espécie de fila de espera, para esconder o jóquer que vai atacar a bola; todas as nuances pesam no desfecho dos lances. E isto é só aflorar o tema pela rama, naturalmente.
Um caso sintomático do pormenor aplicado nos esquemas tácticos é relatado no livro Pep Guardiola: The Evolution, de Martí Perarnau, e tem como “vítima” o Benfica. O lance reporta ao empate registado na segunda mão dos quartos-de-final da Liga dos Campeões de 2015-16 (2-2), no Estádio da Luz, e em concreto ao segundo golo do Bayern Munique.
Das longas e exaustivas horas de observação aos jogos dos “encarnados”, a equipa técnica do campeão alemão extraiu a conclusão de que o rival defendia os pontapés de canto com dois jogadores ao primeiro poste, quatro sobre a linha da pequena área e os restantes quatro em redor da marca de penálti. Identificada uma maior fragilidade ao segundo poste, os bávaros desenharam uma solução, que treinaram 20 vezes na segunda-feira anterior à partida e outras 20 na terça-feira (para além dos vídeos consumidos pelos jogadores). O resultado, que nas sessões de trabalho atingiu os 60% de eficácia, foi brilhante.
Ribéry foi o único jogador destacado para o interior da área. Javi Martínez e Arturo Vidal ficaram na meia lua, Müller, Thiago Alcântara e Kimmich à entrada da área, no enfiamento do primeiro poste. Como combinado, Xabi Alonso bateu a bola longa, ao segundo poste, Javi fez uma trajectória de penetração e ganhou de cabeça a Eliseu, assistindo Müller, o primeiro a chegar de um trio que fez o movimento contrário ao da defesa do Benfica. Chamaram-lhe o “canto Javi”. E quando uma ideia tem direito a um nome é sinal de que ganhou vida própria.