Juiz do caso das mulheres adúlteras punido com advertência

Conselho Superior da Magistratura esteve dividido e presidente teve que usar voto de qualidade. Outros conselheiros defendiam aplicação de multa. Na semana passada órgão de supervisão dos juízes recusara arquivar o caso, como sugeriu conselheiro que analisou o processo.

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Rui Gaudêncio

Uma advertência registada. Foi esta a pena disciplinar aplicada a Neto de Moura, juiz do Tribunal da Relação do Porto que desvalorizou uma agressão grave praticada pelo marido contra a “mulher adúltera”, num acórdão de Outubro de 2017.

Conselho Superior da Magistratura (CSM), o órgão de supervisão dos juízes, determinou essa pena disciplinar esta terça-feira com apenas quatro votos, tendo sido necessário ao presidente usar o voto de qualidade. Outros quatro membros do conselho defenderam a aplicação de uma pena de multa e os sete que votaram a favor do arquivamento do caso optaram por se absterem. Na semana passada, numa decisão igualmente controversa – oito votos a favor e sete contra - o órgão de tutela dos juízes recusou arquivar o caso, como sugeria o conselheiro que analisou o processo.

Numa nota divulgada à comunicação social, o CSM diz que decidiu “aplicar, pela prática de uma infracção disciplinar por violação do dever de correcção, a sanção de advertência registada”. Adianta que “votaram a favor da sanção de advertência registada quatro membros do conselho, incluindo o presidente, este com voto de qualidade, e o vice-presidente”. A advertência registada significa que a pena vai ficar inscrita no processo individual do juiz.

O presidente do Supremo Tribunal de Justiça e por inerência do CSM, António Joaquim Piçarra, considerou que as expressões proferidas pelo juiz "são ofensivas, desrespeitosas e atentatórias dos princípios constitucionais e supraconstitucionais da dignidade e da igualdade humanas".

Já o vice-presidente do órgão de supervisão dos juízes, Mário Belo Morgado, defendeu, numa nota escrita, que "a fundamentação das sentenças não pode resvalar para o campo não jurídico, de discussão moral, ideológica, religiosa ou panfletária". Lembrou que o objectivo da responsabilização disciplinar dos juízes consiste na credibilidade do sistema de Justiça e dos próprios magistrados e que todos os países que possuem sistemas próximos dos nossos penalizam disciplinarmente "os comportamentos excessivos e inadequados que revelem falta de respeito por pessoas referidas nas sentenças e a utilização de expressões desnecessárias, extravagantes e manifestamente ofensivas e desrespeitosas". 

À Lusa, o advogado do desembargador Neto de Moura diz que o juiz irá recorrer da advertência para o Supremo Tribunal de Justiça. Ricardo Serrano Vieira diz que vai esperar pela notificação da decisão e "ver quais os fundamentos na sua base" para poder recorrer.

O PÚBLICO sabe que o inspector que analisou o caso considerou que tinha havido infracção disciplinar, uma posição que não foi seguida pelo vogal do conselho, um juiz, que ficou encarregue de escrever a decisão. 

acórdão foi assinado pelo juiz Neto de Moura, que redigiu a decisão, e pela colega Maria Luísa Arantes, mas só o primeiro foi punido. Relativamente à juíza, o CSM decidiu arquivar o respectivo processo disciplinar. Também houve divisão nesta decisão em que 11 conselheiros defenderam o arquivamento e quatro o contrário. O órgão de supervisão dos juízes entendeu que não “era exigível” à magistrada “demarcar-se formalmente de expressões que não integravam o núcleo essencial da fundamentação, antes constituindo posições da responsabilidade pessoal e exclusiva do relator”.

No acórdão da Relação do Porto, assinado pelos dois juízes, lia-se: "O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. Ainda não foi há muito tempo que a lei penal (Código Penal de 1886, artigo 372.º) punia com uma pena pouco mais que simbólica o homem que, achando sua mulher em adultério, nesse acto a matasse".

Os juízes explicavam, na decisão de 11 de Outubro de 2017, que com estas referências pretendiam apenas "acentuar que o adultério da mulher é uma conduta que a sociedade sempre condenou e condena fortemente (e são as mulheres honestas as primeiras a estigmatizar as adúlteras) e, por isso, vê com alguma compreensão a violência exercida pelo homem traído, vexado e humilhado pela mulher".

Em causa estava a análise de um recurso apresentado pelo Ministério Público que contestava as penas suspensas aplicadas ao ex-marido da vítima, que a agrediu com violência no final de Junho de 2015,​ e a um homem com quem esta mantivera uma breve relação extraconjugal, pouco antes de se separar, que a perseguia, ameaçava e insultava. 

Foi este último quem sequestrou a vítima no seu próprio carro e chamou de seguida o marido. O Tribunal de Felgueiras deu como provado que o antigo amante agarrava a mulher enquanto o marido "empunhando um pau comprido com a ponta arredondada, onde se encontravam colocados pregos" lhe bateu, primeiro, na cabeça e, depois, em diversas partes do corpo, provocando-lhe lesões um pouco por todo o organismo. O ex-marido foi condenado a uma pena de prisão de um ano e três meses suspensa e o antigo amante apanhou um ano de cadeia suspensa, além de uma multa. 

Os juízes da Relação do Porto não viram razão para agravar as penas e até defenderam que o Tribunal de Felgueira podia ter ponderado "uma atenuação especial da pena", face à acentuada diminuição da culpa e ao arrependimento genuíno do ex-marido. "Foi a deslealdade e a imoralidade sexual da assistente [a vítima] que fez o arguido cair em profunda depressão e foi nesse estado depressivo e toldado pela revolta que praticou o acto de agressão, como bem se considerou na sentença recorrida", argumentaram.

O acórdão gerou uma onda de indignação pelo país que desencadeou manifestações em várias cidades. Logo em Outubro de 2017, o Conselho Superior de Magistratura abriu um inquérito disciplinar aos dois juízes, convertido mais tarde em processos disciplinares a cada um deles.

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