Ministério Público prepara estratégia para violência doméstica
Grupo de trabalho da PGR vai apresentar propostas de alteração ao Código de Processo Penal para que menos processos fiquem para trás por desistência da vítima. Faltam dados sobre actuação das autoridades.
O que falta ao sistema para ser mais célere, coerente e eficaz na protecção das vítimas de violência doméstica? Está para muito breve a apresentação de uma proposta de directiva à Procuradora-Geral da República (PGR) com recomendações baseadas no diagnóstico feito por um grupo de trabalho criado pelo Ministério Público (MP), em Março do ano passado, que analisou a fundo estes problemas.
Ao colectivo, constituído por quatro magistrados designados pelas procuradorias-gerais distritais e um membro do gabinete da PGR, coube o mandato de elaborar “um plano de acção que contemple a criação de documentos uniformizadores de procedimentos e boas práticas e que, simultaneamente, promova a actualização dos já existentes”.
Miguel Ângelo Carmo, procurador da República e coordenador deste grupo de trabalho para a definição de uma estratégia de combate à violência doméstica, explica que “o diagnóstico está feito” com contributos recebidos de colegas que estão no terreno a trabalhar na área. “Estamos a falar de um diagnóstico muito direccionado para questões funcionais, ou seja, o que é que o Ministério Público entende que tem que melhorar, quer numa perspectiva interna, quer numa perspectiva, por exemplo, de contacto com os órgãos de polícia criminal”, diz ao PÚBLICO. E as propostas não serão apenas para a violência doméstica, tendo implicações também em “todo o tipo de criminalidade relacionada com violência baseada no género”.
O grupo de trabalho vai recomendar à PGR que proponha um conjunto de alterações legislativas que devem ser ponderadas por parte do poder político, ou seja, para que “dentro daquilo que são as competências próprias [da PGR], possa suscitar junto do Ministério da Justiça a possibilidade de serem realizadas alterações ao Código de Processo Penal” (CCP).
Por exemplo, os procuradores consideram que o artigo 134.º do CCP, sobre recusa de depoimento, poderia ser alterado para contornar um dos grandes motivos da suspensão dos processos de violência doméstica: a recusa da vítima em prestar depoimento em tribunal, o que limita a produção de prova muitas vezes determinante. “O que acontece em diversos ordenamentos jurídicos é que a possibilidade de recusa é excepcionada para este tipo de criminalidade”, exemplifica o procurador. Em alternativa, poderia alterar-se o CCP de forma a ser possível que, nos casos em que a vítima se recuse a prestar depoimento em julgamento, perante o juiz, fossem aproveitadas as declarações anteriormente prestadas em sede de inquérito, à polícia ou ao Ministério Público.
A falta de dados — e de conhecimento da realidade — é outro problema identificado. “Não termos um conhecimento da realidade efectiva do que se passa. Para podermos ser melhores, temos que saber o que se está a fazer para melhorar.” A recolha de dados como o número de detenções, de primeiros interrogatórios, de medidas de coação que são aplicadas “não está a ser feita de uma maneira sistemática”, uma preocupação que o grupo de trabalho detectou e que vai sinalizar nesta directiva.
Em Novembro, o Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE) recomendou a Portugal que faça alterações na recolha de dados sobre violência doméstica, já que muitas vezes não é possível distinguir, por exemplo, os casos de violência em relações de intimidade das outras incidências de violência doméstica, como a violência contra ascendentes e descendentes. O EIGE sugere que a Circular da PGR 7/2012, onde os magistrados registam dados sobre a conclusão dos processos, seja actualizada “para incluir categorias obrigatórias sobre a vítima, o agressor e a relação entre ambos” — o que poderá ser uma das alterações propostas pelo grupo de trabalho do MP.
Em resposta ao PÚBLICO, a PGR adianta que, no âmbito do grupo de trabalho sobre violência doméstica, foi também identificada a necessidade de criar “mecanismos de comunicação internos do Ministério Público quanto à promoção e aplicação de medidas de coacção e a de melhor articulação comunicacional entre a jurisdição criminal e a de família e crianças”.
O procurador Miguel Ângelo Carmo chama ainda a atenção para os esforços que têm sido feitos para resolver alguns dos problemas identificados, como o acordo recentemente assinado entre a Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) e o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) para reforço da formação em matérias de violência doméstica e outras formas de violência de género. Os magistrados que se dedicam a esta área pedem que a formação seja mais direccionada para casos práticos e para a aplicação da lei — algo que já tem vindo a ser feito, por exemplo, com a oferta de formações do CEJ com a participação de elementos da Equipa de Análise Retrospectiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD).
Nos cinco relatórios da EARHVD (o primeiro foi publicado em Novembro de 2017), o grupo tem apontado falhas graves na condução dos casos, deixando recomendações para melhorias nos serviços de saúde, forças de segurança e magistrados, para a “uniformização dos procedimentos nas jurisdições criminal e de família e crianças”, e para a própria CIG, enquanto entidade que supervisiona a coordenação de esforços, para que continue a investir na cobertura de todo o território.
Na sequência destes relatórios e respectivas recomendações, têm sido assinados vários protocolos em diferentes áreas para melhorar a formação especializada para profissionais que lidam com vítimas de violência doméstica, assim como a cooperação entre tutelas em áreas como a justiça, forças de segurança e administração interna, segurança social e habitação. “Esta é uma grande lacuna. Todos os actores que têm intervenção no fenómeno têm que trabalhar em conjunto, de uma forma integrada, porque senão não vamos lá.”
Tendo em mãos as conclusões baseadas na experiência dos magistrados do Ministério Público, falta ainda concluir o contacto com a PSP e GNR antes de o grupo de trabalho finalizar a proposta de directiva, que será entregue à PGR nos próximos meses.