Viagem ao Porto onde “Cristo não passou”
No lugar de Azevedo, em Campanhã, parece ter estacionado a cidade do século passado. Pobreza, habitação precária, população envelhecida, falta de equipamentos e apoios, escassez de transportes. Câmara vai investir ali 2,6 milhões de euros. Será suficiente?
As palavras não lhe traduzem o saber do coração e José Teixeira pede desculpa por isso. Uma, duas, três vezes. Pede desculpa porque ele sabe e não consegue explicar. Surge entre as grades de uma porta metalizada, número três da sua ilha, e convida a entrar. “É casa de pobre, mas se quiser ver…” A sopa, com pedaços de pão amolecido, arrefece à mesa. Mas ele não se importa. Caminha até à casa de banho, aponta o tecto enegrecido e húmido. Abre a porta que dá para o quintal. “É isto”, encolhe os ombros, “a gente vive aqui”. José Teixeira sabe. A pobreza é não ter escolha: “Ia embora, se me saísse o Euromilhões”, pronuncia com voz tímida. “Mas estou aqui, vou ficar aqui.” Estivesse a mulher em casa, desculpa-se mais uma vez, e teria sabedoria para explicar melhor. Na verdade, sem o perceber, já tinha dito tudo.
Lugar de Azevedo, Campanhã. Das janelas da casa de José Teixeira, na Rua da Levada, avista-se roupa estendida em longas cordas. Um matagal imenso. O cenário emoldurado dificilmente convenceria alguém descontextualizado, mas estamos no Porto. No século XXI. As oito habitações daquela ilha têm casas de banho, embora as canalizações tenham sido improvisadas de forma amadora pelos moradores. As fossas permanecem a céu aberto, o cheiro é, por vezes, nauseabundo. “Vivemos aqui no terceiro mundo”, queixa-se a vizinha Adelina Bessa.
Há dias, funcionários das Águas do Porto analisaram a zona para preparar parte da intervenção anunciada há uma semana pela autarquia, uma promessa feita por sucessivos presidentes e agora cumprida por Rui Moreira. A câmara vai destinar àquela parte da cidade 2,6 milhões de euros, para obras em 14 arruamentos e destinados a uma intervenção especial nesta ilha. A cena, conta Adelina, deixou os homens boquiabertos. E a análise estava restrita ao saneamento. Vissem eles o interior das casas da ilha e o espanto talvez fosse outro.
Neste território limite do Porto, na fronteira com Gondomar, encena-se uma tragédia sem final à vista. Adelina Bessa, 64 anos, não conheceu outra casa em toda a vida. Mora com o filho, a nora e uma neta. O marido morreu há coisa de meio ano e com ele sepultou-se a esperança de uma casa humanamente habitável. As melhorias no espaço foram obra sua. E agora Adelina anda a toda a hora com sprays a camuflar o odor da degradação crescente do lar, a humidade entranhada. A neta, de seis anos, pede-lhe para dormir com ela. Mas na parede onde a cama se encosta os pingos da água são visíveis. Adelina usa então uma almofada cilíndrica bem grande para afastar a menina do frio, embrulha-a em muita roupa, não a deixa saber quão desigual pode ser uma cidade.
Fazer uma “praia no campo”
Na zona comum da ilha de morfologia atípica – com labirintos entre casas em vez do típico corredor estreito –, há traves de madeira carcomida a sustentar um tecto. Máquinas de lavar roupa, plantas impecavelmente tratadas, gatos a passearem-se satisfeitos com o prato generoso de comida à vista. Carina Vieira, nora de Adelina Bessa, foi para ali há oito anos e não olha para trás. Para quem deixou o Bairro do Cerco, o “sossego” de Azevedo não tem preço. No Verão, diz, costumam encher uma piscina e fazer do quintal uma “praia no campo”. Este ano, porém, já não terá o genro para limpar a mata. E essa mágoa do esquecimento tem-na arrumada numa gaveta pronta a abrir numa próxima eleição. Nas campanhas, queixa-se, todos aparecem de promessas na mão. Depois, tudo passa. Permanece igual.
Severina Rodrigues dá colo à neta Nicole. Oito meses, bochechas e sorriso cheio. A cozinha de casa da filha, Fabiana Rodrigues, ficou inutilizável de tanta água da chuva acumulada. Em algumas zonas da habitação de Severina também chove “como se estivesse na rua”. Mas, entre o mau e o péssimo, na impossibilidade da mudança, vão saltando entre um lugar e outro. Fabiana dorme com Nicole. A sua filha mais velha com a avó. O projecto da Câmara do Porto aqueceu esperanças. Mas, para elas, a forma dos sonhos já não se desenha agigantada. Mistérios da afeição aos lugares, talvez. Ou então desconhecimento da possibilidade de outro caminho. “Se ajeitassem as casas por fora e os telhados já ficávamos felizes”, aceita Fabiana Rodrigues.
Há uma espécie de peregrinação no passo ligeiro de Bininha, Albina de Jesus Pinheiro, 80 anos de vida e de moradora em Azevedo. Há muito se fez pronto-socorro naquela geografia, auxílio no bairro do Lagarteiro, guia para quem se atreve a conhecer a zona. Aconteceu um dia levar uns jornalistas brasileiros à procura do Porto marginal aos guias turísticos. Quando viraram à esquerda na Travessa da Levada e entraram na rua com o mesmo nome julgaram-se numa viagem no tempo e espaço. “Disseram-me 'Cristo não passou aqui’”, conta Bininha ao cruzar a mesma artéria. “E é mesmo verdade.”
A queda no poço fundo do esquecimento desenhou-se há muito. A CDU chegou a propor, em 1997, a passagem de Azevedo a freguesia autónoma, numa tentativa de forçar a ida de serviços para o lugar. Não aconteceu. E nos cerca de dois quilómetros quadrados de Azevedo, no lado de fora da Circunvalação, permanecem sinais preocupantes de exclusão. Uma população envelhecida, com escolaridade, rendimentos e pensões baixos, altas taxas de desemprego, habitação de precariedade extrema, números preocupantes de toxicodependência, equipamentos sociais quase inexistentes. Ali, passa apenas um autocarro da Resende e o 400. E, com as mudanças dos percursos, quem queira ir para o centro da cidade, para chegar à Avenida dos Aliados por exemplo, tem agora de fazer transbordo. Caixa multibanco, continua a não existir. A colectividade Iniciadores, onde muitos fizeram teatro, vai organizando uns bailaricos de longe a longe, o café aberto, um bilhar. Resistem, apesar das sucessivas ameaças, a esquadra de polícia, o centro de saúde e os CTT. Um minimercado, um pão quente, uma adega onde se jogam cartas, um café.
Um não-lugar, sem volta
Olinda Oliveira, 80 anos, está à porta da sede do extinto Vitória de Campanhã, outrora baptizado de Paz e Sossego. A associação, com clube de futebol e atletismo e de portas fechadas há pelo menos três anos, anda em busca de meios para tentar uma segunda vida. Isso, diz a moradora, seria uma excelente notícia. “Era preciso alguma coisa para a mocidade”, comenta: “Sentam-se ali nas escadas da igreja a falar sem nada para fazer.”
Avental azulado e pantufas da Serra da Estrela nos pés, vai descendo a rua a caminho da sua ilha, número 17 da Travessa de São Pedro, e tirando o pulso ao lugar onde chegou há 62 anos. Criou oito filhos, tem “para aí nove netos” e “uns cinco ou seis bisnetos”, atira de sorriso aberto: “Tinha de os contar”. Vai devagar na artéria em paralelo, a temer as quedas: “Era preciso umas obrinhas aqui”, pede, “isto é uma aldeola.”
Bininha prossegue a visita. “Se até aqui é mau, nesta rua nem se fala, é um Deus me livre.” Pés na Travessa da Levada, o paralelo a desaparecer entre a erva, a plantação alta a crescer nos muros mais altos ainda. Canos de saneamento saídos do betão, a deixar cair dejectos directamente para a rua. Uns metros à frente, um carro de vidros partidos, abandonado. Atrás, um quadro a confundir: ainda estamos no Porto? Uma mulher sentada num tronco de árvore deitado no chão, cajado improvisado numa mão, sete ovelhas à volta. É Fátima Sousa, 62 anos, ex-trabalhadora do têxtil tombada no desemprego quando a sua fábrica fechou. O marido era homem da lavoura, de afeição forte aos animais, e, quando morreu, Fátima não quis deixar o legado ao abandono. Na Rua da Granja, onde mora sozinha, já foi assaltada duas vezes. Não gosta da solidão. Mas os três filhos cresceram e ela ali ficou. Com as ovelhas por companhia.
“Isto aqui era tudo cultivado. Milho, videiras, o ribeiro ao fundo. Não era, Fátima?”, espicaça Bininha com o aceno nostálgico da pastora. Albina, olhos azuis vibrantes e generosidade infinita, põe-se a fitar o estado do terreno, a recordar pretéritos que não voltam. “Noutro dia o meu filho veio aqui e ficou banzado!”, comenta. Em menina, ia da sua casa, no Largo de São Pedro, até ao ribeiro agora tapado pelas silvas. Bacia com roupa na cabeça, sabão na mão. “Estávamos ali a esfregar a roupa, às vezes pegávamo-nos para ver quem ficava com a melhor pedra. Ficava a corar, apanhávamos sol. Era uma maravilha”, recorda.
A beleza do bucólico vencia, naqueles anos, a angústia do desamparo. Mas agora que a beleza se foi, o que sobra? “Para lá da Rotunda do Freixo isto é uma aldeia.” Na frase de Bininha, repetida à exaustão, está a tamanho da tristeza da menina que ali cresceu e foi feliz. Nas suas palavras de “revolucionária” soma-se sempre gente, os interesses dos outros. Subtraem-se desentendimentos para chegar a acordos. Se assim não fosse, talvez já tivesse abrandado o passo acelerado que faz muitos conhecerem-na ao longe. A luta por dias melhores tem para ela estacionamento proibido. Se a cidade partida se cimentar, acredita, talvez a mudança aconteça. Porque Azevedo é um não-lugar. Sem volta. Quem lá entra com olhos de ver, nunca mais regressa igual ao mapa do Porto.