Bininha, o “socorro” de Campanhã, fez 80 anos e só vê futuro
Assistente social improvisada, guardiã da solidariedade, memória viva de uma cidade-aldeia onde a vizinhança era segunda família. Albina de Jesus Pinheiro, a mais famosa anónima do Porto Oriental, fez 80 anos. E dezenas de portuenses juntaram-se para a celebrar
Sentou-se junto à janela, sem medos nem coração acelerado, apenas pasmada com as asas do avião. Tão gigantes vistas dali, tão pequeninas quando, ao longe, observava aquele pássaro de motor a rasgar nuvens. Bininha ia voar pela primeira vez, aos 79 anos e 10 meses de vida, para mostrar em Bruxelas como a arte pode mudar comunidades. Na bagagem, levava o cartaz que a companhia Visões Úteis desafiou os participantes do projecto Reclaim the Future a preencher com uma palavra. À pergunta “o que é a vida”, ela retorquiu sem hesitar: “energia”. E com aquelas sete letras, onde não cabem lamentos com pretéritos da vida, percorreu ruas da capital belga, contando já parte do segredo que por estes dias muitos lhe pedem para revelar. Como se chega aos 80 fazendo parecer a data de nascimento um mero erro administrativo? “Não páro”, diz decidida, “nunca páro”.
Será apenas parte da fórmula. Bininha, Albina de Jesus Pinheiro no cartão de cidadão, é talvez a anónima mais famosa de Azevedo de Campanhã. Naquele fragmento de Porto, onde parece ter estacionado a cidade do século passado, ela tornou-se abrigo. Se alguém se vê aflito, bate-lhe à porta: um pai inquieto com o desemprego do filho, um filho em busca de uma cama articulada para o pai, um imbróglio por resolver. Ela ouve, relativiza se preciso, aconselha. Usa a “via aberta” para a junta de freguesia de Campanhã para relatar os problemas. Resolve-os. Os olhos azuis de Bininha são foco de sinalização naquele lado oriental da cidade — e no bairro do Lagarteiro em particular. É guardiã da solidariedade, assistente social improvisada, memória viva de uma cidade-aldeia onde a vizinhança era segunda família. Onde o cada um por si não entrava.
Foi o percurso dessa mulher-energia que, entre sexta e a madrugada de sábado, dia do seu aniversário, se celebrou na adega A Viela. Com música, poesia, uma pequena performance, depoimentos. Bininha, cabelo branco impecavelmente arranjado, unhas pintadas e maquilhagem de dia de festa, aguentava a emoção. A sala fez-se pequena para os tantos que quiseram agradecer-lhe a generosidade, gabar-lhe o vigor infinito e a ausência de preconceitos, cantar os parabéns ao som da Internacional. Não estavam apenas a família e amigos de longa data. À festa da Bininha, não faltaram os dirigentes da junta de freguesia dos últimos 30 anos: Rodrigo Oliveira, Fernando Amaral, Ernesto Santos. No festejo, estiveram o socialista Manuel Pizarro e José António Pinto, assistente social distinguido por unanimidade com uma medalha de ouro pela Assembleia da República. E ainda um sem fim de gente de diversos ofícios. Porque a Bininha, comentava-se, é metáfora de uma cidade tecida de solidariedade. Créditos para combater momentos de descrença numa sociedade melhor.
Uma nova missão
Quinta e última filha de uma família pobre de Lousada rendida ao Porto no início do século passado, Albina era menina inquieta e apaixonada pelas letras na escola. Os pais mudaram-se para a cidade grande atraídos pelo emprego na forte indústria de Campanhã. Ele trabalhava na fábrica Nascimento, ela era mulher da lavoura. Bininha percebeu cedo a vida do avesso. Aos 11 anos deixou a escola para trabalhar na Camisaria Confiança, na Rua de Santa Catarina. Anos depois, apresentou-se na Mário Navega, conhecida fábrica de esmaltagem na Rua do Freixo, a mostrar dotes de palco enquanto talento extra para a contratação. A empresa procurava gente para o seu grupo de teatro e ela tornou-se actriz amadora. Namorou, foi mãe solteira aos 26 anos, nunca se casou por convicção.
O Porto era “uma outra cidade”. Cheia de emprego, rebuliço constante. Mas depois da indústria robusta veio o seu desmantelamento. A partir dos anos 60 e 70 o chão abanou. E Campanhã caiu num limbo: entre a lógica urbana não alcançada e o subúrbio clássico no qual não se transformou. Em Azevedo, na fronteira com Gondomar, criou-se um submundo do submundo.
Levada no sismo, também a Mário Navega fechou. E Bininha, reformada antes do tempo e entristecida, acabou por encontrar nova missão. Durante anos, tomou conta de idosos como se fossem família: da senhora com Alzheimer que vivia só, da “velhinha de 92” sem filhos, do barbeiro Adelino. Morreram-lhe, um a um. E ela fechou a porta, a fugir à afeição dolorosa. Em 2000, conhecia o “doutor Pinto” e tornava-se a sua “assessora” no atendimento social no Lagarteiro. Para não mais sair. É dela a missão de distribuir, todas as terças, as senhas aos utentes do serviço social do bairro. É ela quem muitas vezes sinaliza ao assistente social os casos a precisar de atenção. Nunca recusa um desafio.
Bininha diz não ter interesse em partidos. Talvez sem notar que, aquilo que faz, é em parte a definição de política. “Deus Nosso Senhor deu-me esta coisa de querer ajudar os outros. Aqui, quando acontece alguma coisa dizem logo: ‘Chama a Bininha, a Bininha isto, a Bininha aquilo’. Todos me conhecem.”
Levanta-se do banquinho circular no Largo de São Pedro, pintado com folhas cor de Outono, e anda ligeira. Há quem a reconheça apenas pelo passo acelerado de quem não tem tempo a perder. Estaciona à porta da casa 2, número 35, onde nasceu e ainda mora. Lá dentro, espera-a Dragão, o seu cão baptizado em honra do clube do coração. Se Bininha fosse um tempo verbal, seria certamente futuro. Ela que de sonhos de menina só tinha a resolução de trabalhar para amparar os pais, deseja, aos 80 anos, coisa parecida: “Paz, sossego e continuar a fazer as minhas coisinhas para ajudar os outros.” Isso, jura, chega para ser “muito feliz”.