Fartos da “infindável burocracia”, médicos exigem outra forma de contratação para o SNS

Demissões em bloco no maior hospital pediátrico do país põem a nu dificuldades de contratação de substitutos dos médicos que vão saindo para o sector privado.

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Paulo Pimenta

Cansados da “ditadura financeira míope” que estará a impedir a contratação dos médicos que têm saído do Hospital D. Estefânia, o coordenador e os nove chefes de equipa de urgência da grande unidade pediátrica de Lisboa demitiram-se em bloco. Pediram para sair já há dois meses em cartas em que expressam o seu desalento pela "infindável burocracia" que não permite a substituição dos que saem para o privado ou por aposentação, mas a renúncia só foi tornada pública esta quarta-feira pelos responsáveis da Ordem dos Médicos (OM), após reunião com os demissionários e o director clínico do hospital pediátrico (que integra o Centro Hospitalar de Lisboa Central). 

“Eles fizeram tudo o que puderam para tentar resolver o problema sem gerar alarme, mas a situação atingiu o limite”, explica o presidente da secção regional do Sul da OM, Alexandre Valentim Lourenço. Desde o início do ano que andavam a alertar para a "insustentabilidade" da situação. Em Maio, a administração prometeu um plano para a contratação faseada de especialistas para substituir os que têm saído, mas o plano “não foi cumprido", lamenta.

Além das "graves deficiências" na pediatria - faltam 12 especialistas -, a situação também é "crítica na anestesia", frisou o bastonário Miguel Guimarães. "Dos dez anestesistas, sete têm mais de 57 e, se deixassem de fazer urgências como a lei permite, o serviço parava", avisou.

“São necessários outros mecanismos de contratação. Os hospitais privados, e há três grandes grupos privados em Lisboa, têm autonomia e velocidade para contratar, pagam muito mais e as urgências não são caóticas com as dos hospitais públicos”, nota Alexandre Lourenço.

Mas na base da situação há um problema estrutural que não é exclusivo da Lisboa, enfatiza. Esta foi já, aliás, a quinta demissão em bloco de responsáveis clínicos de vários hospitais de Norte a Sul, este ano, por motivos semelhantes. A própria secretária de Estado da Saúde, Raquel Duarte, deixou de dirigir a Unidade do Tórax do Hospital de Gaia em Março passado, por falta de condições de trabalho, antes de 52 directores e chefes de serviço daquela unidade terem pedido a demissão.

A desmotivação foi crescendo, depois de os chefes de equipa de urgência do D. Estefânia terem feito vários alertas que caíram em saco roto: "Os responsáveis políticos ainda não perceberam que, se os médicos meterem os papéis para deixarem de fazer urgências, os serviços de urgência colapsam", avisa Miguel Guimarães.

Os demissionários do D. Estefânia já tinham reestruturado as equipas para poderem ter sempre as escalas asseguradas, mas "não são suficientes para dar resposta a uma afluência habitual da ordem de 250 doentes por dia, e que muitas vezes é superior à prevista, sobretudo durante a noite", especifica Alexandre Lourenço. Além da urgência externa, têm que assegurar a urgência interna e acompanhar os doentes que necessitem de ser transferidos. 

Ouvida na comissão parlamentar da Saúde, a ministra Marta Temido afirmou que estas demissões podem ser entendidas de duas maneiras: "Como um sinal de que algo não vai bem e que é preciso trabalhar para melhorar ou como uma forma de descredibilizar o sistema." A governante optou pela primeira hipótese, mas não deixou de adiantar que o Centro Hospitalar Lisboa Central, a que pertence o D. Estefânia, tem 108 pediatras e 29 internos. "Sendo uma das jóias da coroa é um hospital que não podemos desguarnecer", disse, mas lembrou que “não abundam pediatras no país". O conselho de administração Centro Hospitalar de Lisboa Central não reagiu às demissões.

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