Chefes da urgência do D. Estefânia demitem-se. Bastonário fala em risco de "colapso"

Ministra diz que demissões podem ser entendidas de duas maneiras: "Como um sinal que algo não vai bem e é preciso melhorar ou como uma forma de descredibilizar o sistema." Bastonário avisa que, se médicos seniores deixarem de fazer urgências, estes serviços "colapsam".

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Nuno Ferreira Santos

O coordenador e os nove chefes de equipa de urgência do hospital pediátrico D. Estefânia, em Lisboa, apresentaram a demissão. Argumentam que o plano do conselho de administração que previa a contratação faseada de médicos especialistas para substituir os que têm saído não foi cumprido e que a situação é "insustentável". Esta é já a quinta demissão em bloco de responsáveis clínicos de vários hospitais de Norte a Sul do país, este ano. 

A actual secretária de Estado da Saúde, Raquel Duarte, foi um de vários responsáveis de hospitais públicos que optaram por deixar as suas funções, este ano, por falta de condições de trabalho. A médica deixou de dirigir a Unidade do Tórax do Hospital de Gaia em Março passado, antes de 52 directores e chefes de serviço daquela unidade terem pedido a demissão.

Formalmente os demissionários do D. Estefânia já não são chefes de equipa mas vão continuar a trabalhar, "não vão abandonar as crianças", explica o presidente da secção regional do Sul da Ordem dos Médicos (OM), Alexandre Valentim Lourenço. Os chefes de equipa de urgência já tinham colocado o lugar à disposição há alguns meses e nessa altura negociaram com o conselho de administração um plano de contratação de médicos que não foi cumprido, nota.

Além das "graves deficiências" na pediatria - faltam 12 especialistas -, a situação é "crítica na anestesia", adiantou ao PÚBLICO o bastonário da Ordem dos Médicos (OM), Miguel Guimarães, à saída de uma reunião com os médicos demissionários e o director clínico do D. Estefânia (unidade integrada no Centro Hospitalar de Lisboa Central). "Dos dez anestesistas, sete têm mais de 57 e, se deixassem de fazer urgências como a lei permite, o serviço parava", avisa o bastonário, pedindo à ministra da Saúde que resolva a situação "rapidamente".

No maior hospital pediátrico do país, a desmotivação cresce, depois de os responsáveis terem feito vários alertas que caíram em saco roto: "A Administração Regional de Saúde não fez nada, o Ministério da Saúde também não e o Ministério das Finanças fez: não autorizou as contratações", lamenta o bastonário, que deixa um aviso: "Os responsáveis políticos ainda não perceberam que, se os médicos meterem os papéis para deixarem de fazer urgências, os serviços de urgência colapsam".

Os pedidos de contratação para o D. Estefânia estão "na plataforma informática" mas não são efectivados, provavelmente por não terem autorização superior, corrobora Alexandre Lourenço. Os demissionários alegam que houve "quebra do compromisso" por parte da instituição e defendem que a actual situação "é insustentável." Já reestruturaram as equipas para poderem ter sempre as escalas asseguradas, mas têm que fazer 24 a 48 horas de urgência por semana para manter o funcionamento, nota.

Miguel Guimarães já tinha chamado a atenção para a situação no D. Estefânia e considerado que é a terceira mais grave, ocorrida em pouco tempo, em unidades que integram este centro hospitalar - a seguir ao hospital de São José e à Maternidade Alfredo da Costa. Vários médicos têm saído e não são substituídos, o que tem originado “exaustão, desmotivação dos profissionais e milhares de horas de urgência realizadas para além da escala legal".

Na urgência do Dona Estefânia, actualmente os médicos "não são suficientes para dar resposta a uma afluência habitual da ordem de 250 doentes por dia, afluência essa que muitas vezes é superior à prevista, sobretudo durante a noite", especifica Alexandre Lourenço. Além da urgência externa, os médicos têm que assegurar a urgência interna (doentes internados no hospital) e acompanhar os pacientes que necessitem de ser transferidos para outros locais.

O hospital D. Estefânia sofre ainda de um problema comum a muitas outras unidades de saúde - uma parte significativa dos médicos que asseguram as urgências são internos do primeiro e segundo ano de especialidade (ainda estão em formação). É preciso contratar médicos "mais diferenciados", reclama o presidente da OM/Sul.

Ouvida na comissão parlamentar da saúde, a ministra Marta Temido afirmou que estas demissões podem ser entendidas de duas maneiras: "Como um sinal de que algo não vai bem e que é preciso trabalhar para melhorar ou como uma forma de descredibilizar o sistema." A governante opta pela primeira hipótese: "Prefiro encarar sempre como algo que não vai bem e é preciso melhorar". 

Luís Vale, do PSD, anunciou que o partido irá apresentar ainda esta quarta-feira um requerimento para ouvir com carácter de urgência estes profissionais. E Isabel Galriça Neto, deputada do CDS, afirmou que o pedido de demissão "não é surpresa, é um sinal que há promessas feitas que não são cumpridas".

Em resposta a este e outros deputados que a voltaram a questionar sobre a demissão, Marta Temido disse encarar "sempre com preocupação estes sinais quando chegam dos directores de serviço". O passo seguinte, acrescentou, "é tentar perceber o que se passa". 

A ministra adiantou que o Centro Hospitalar Lisboa Central, a que pertence o hospital D. Estefânia, tem 108 pediatras e 29 internos. "A questão é quantas vagas podemos dar ao D. Estefânia e quantas vagas devemos também dar a outros hospitais do Serviço Nacional de Saúde. Compreendemos especificidade do D. Estefânia, mas há uma questão de equidade que temos de assegurar", justificou.

Segundo a governante, no primeiro concurso [para contratação de médicos recém-especialistas deste ano] esta unidade hospitalar "pediu três vagas e teve as três", razão pela qual "não é uma realidade que o problema se mantenha sempre constante".

"Sendo uma das jóias da coroa é um hospital que não podemos desguarnecer", disse também. "Mas não podemos esquecer-nos de que é uma unidade que tem mais de 80 pediatras e o centro hospitalar tem outros 20 pediatras e cerca de três dezenas de internos. Não abundam pediatras no país e temos de ser muito cuidadosos [na colocação] nos profissionais que terminam a especialidade". Marta Temido referiu ainda que a questão não é nova: as direcções dos serviços [deste hospital] têm-se manifestado diversas vezes sobre este tema. O conselho de administração Centro Hospitalar de Lisboa Central ainda não reagiu às demissões.

Mais demissões

Mas esta é uma demissão em bloco que se vem juntar a outras que se têm sucedido ao longo deste ano. Os motivos são comuns: falta de condições, de recursos humanos e equipamento. 

Logo à cabeça, surge a demissão em bloco de 52 directores e chefes de serviço do hospital de Gaia, onde mesmo a nova secretária de Estado da Saúde, a médica Raquel Duarte, se antecipou e pediu em Março para deixar de dirigir a Unidade do Tórax .

Antes disso, em Maio, mais de 30 directores e coordenadores de serviço do Centro Hospitalar Tondela-Viseu apresentaram uma carta de demissão, justificando-a com a degradação das condições de trabalho. Uma das situações mais graves estava relacionada com o serviço de oncologia, onde os médicos se queixavam de não estar a conseguir dar resposta a novos doentes.

Em 6 de Julho foram os chefes de equipa de medicina interna e cirurgia geral do Centro Hospitalar de Lisboa Central (que integra o hospital de S. José e outras cinco unidades) que avançaram com medida semelhante, depois de terem enviado duas cartas à administração no final de 2017 e no início deste ano criticando as más condições da urgência e a falta de profissionais.

Cinco dias depois, os chefes de equipa de ginecologia e obstetrícia da Maternidade Alfredo da Costa (do mesmo centro hospitalar), seguiram os passos dos colegas e fizeram chegar à administração o pedido de demissão. Em causa, de novo, a exaustão por falta de profissionais. Nessa altura, a administração disse que a situação estava ultrapassada.

Em Agosto, os chefes de equipa do serviço de urgência de obstetrícia e ginecologia do hospital Amadora-Sintra concretizaram o pedido de demissão que tinham apresentado uma semana antes. Em causa, mais uma vez, estava a falta de recursos humanos.

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