Cidades inteligentes

Interessa reposicionar o discurso nas pessoas e no seu conhecimento para repensar a cidade de hoje e os seus problemas cada vez mais complexos.

As cidades inteligentes, também conhecidas por Smart Cities, entraram no discurso corrente sobre as políticas urbanas. Hoje, tudo tem de ser smart e estar ao alcance do nosso telemóvel, também denominado smartphone. Na era da tecnologia, da internet e do digital, estes objetos tornaram-se ferramentas preciosas para o nosso quotidiano, fazendo a ponte entre as pessoas e a vida urbana e comunitária. Percorremos e habitamos a cidade em plataformas virtuais, onde podemos ter acesso a e-serviços, e-trabalho, e-ensino ou e-comércio a partir de nossa casa. Podemos também comunicar através das plataformas de e-comunicação aumentando a intensidade e a proximidade das relações.

O crescimento deste fenómeno é exponencial e os seus limites são ilimitados, especialmente com a chegada da inteligência artificial e com a internet of all things que irá dar mais autonomia às máquinas e, provavelmente, menos às pessoas. São muitos os que nos trazem o discurso deslumbrado da tecnologia e também são muitos aqueles que nos alertam para o caos que se avizinha com a desterritorialização dos fenómenos urbanos e sociais.

Fernando Távora, arquiteto e professor, costumava alertar-nos, por um lado, para a verdade das posições contrárias – “em Arquitetura [e na vida] o contrário também é verdade” – e, por outro lado, para a necessidade de olharmos para as cidades e para as pessoas ao mesmo nível – “mais do que edifícios inteligentes, precisamos de pessoas inteligentes”.

Seguindo a sabedoria e o humor de Fernando Távora, interessa não esquecer que, para além do mundo virtual, que toma conta dos nossos dias, existe um mundo físico constituído por pessoas, edifícios, espaços públicos, paisagens, que tem também de ser objeto de políticas públicas inteligentes. Foi assim que as nossas cidades e sociedades foram pensadas ao longo de séculos, espacializando culturas e políticas, que ainda hoje podemos observar quando percorremos a cidade romana, árabe, medieval, renascentista, barroca, neoclássica, moderna ou pós-moderna. Todas estas camadas se sobrepõem e complementam conferindo complexidade e beleza, mesmo quando predomina o caos urbano.

A construção (e reconstrução) dos centros históricos, a expansão urbana, a organização territorial, o desenho da paisagem são dos maiores legados do Homem pensados através da experiência, de modelos e da sua permanente aculturação. Assim, sem rejeitar o papel das tecnologias de informação, interessa reposicionar o discurso nas pessoas e no seu conhecimento para repensar a cidade de hoje e os seus problemas cada vez mais complexos.

Este tem sido o papel do Centro de Estudos Sociais, que celebra na próxima semana 40 anos de investigação interdisciplinar sobre os desafios sociais que a democracia e os direitos humanos enfrentam num mundo mais globalizado e mais injusto, através de uma equipa diversa liderada pelo sociólogo Boaventura Sousa Santos. Os temas de investigação, que construíram ao longo deste percurso, estão cada vez mais na ordem do dia e constituem um contributo essencial para repensar a cidade, tornando-a mais inteligente, mas também mais democrática, mais inclusiva e mais respeitadora da dignidade humana.

Um dos aspetos centrais desta investigação é a implementação dos processos de participação e colaboração nas práticas sociais que permitam a integração do cidadão na cidade, constituindo um dos pilares do direito à cidade. Assim, interessa discutir a espacialização da “linha abissal que divide aqueles que têm ou não direito à cidade”, como referiu Boaventura, em aula recente, sobre “As cidades na encruzilhada entre a paz democrática e a exclusão abissal” (Maio, 2018).

O grande desafio das cidades inteligentes é focarem-se nas pessoas e na sua capacidade para diagnosticar, conceber e implementar estratégias de transformação urbana em diálogo com os técnicos, com os políticos ou até com os investidores. A investigação e a ação sobre a cidade podem assim emergir do cidadão, de baixo para cima, apoiadas em laboratórios vivos (living labs), e contrapor-se às políticas urbanas que derivam da ação direta da administração pública local, regional e nacional. A cidade não tem de estar dividida entre o público e o privado, entre o empresário e o operário, entre o cidadão e o turista, entre o local e o global, entre o real e o virtual. A cidade pode encontrar outras formas inteligentes de estabelecer um diálogo inclusivo que permita crescer e requalificar-se física, cultural e socialmente.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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