“Ucrânia” é vítima de violência doméstica
Ninguém tem coragem para assumir uma relação oficial e estável que faça a Ucrânia sentir-se amada e segura. “Se me deixares, eu mato-te e mato-os”, sopra-lhes a Rússia ao ouvido.
Nos últimos três anos, venho acompanhando de perto um caso de violência doméstica. Vou denunciá-lo, mas, para efeitos de proteção de identidade da vítima, vou chamar-lhe "Ucrânia".
A Ucrânia esteve casada durante séculos com a, chamemos-lhe, "Rus de Kiev" ou "Rússia". Foi uma relação marcada por momentos de união, conflito e tensão. Alguns casais passam por isso. No entanto, o primeiro amor não se esquece, lembra-nos o dito popular. O tempo passou e a relação evoluiu para um controlo contínuo da Rússia. Primeiro com uma relação de domínio de tipo imperial e depois de outra mais socialista.
Em 1991, tudo acabou. Houve divórcio. Com a queda do muro da relação, a Ucrânia obteve a sua independência e pôde afirmar a sua identidade. Ganhou a confiança de quem estava do outro lado, o "Ocidente", chamemos-lhe assim, que a namorava utopicamente desde outro ponto cardeal. Em 1994, como sinal de boa vontade e com o incentivo e apoio dos novos pretendentes, a Ucrânia foi a Budapeste assinar um memorando, deixando para trás as suas joias nucleares. Dez anos volvidos, esta nova relação parecia ainda mais promissora. Houve uma revolta, a Ucrânia fica laranja de raiva e, enfim, tenta romper com o passado, procurando um novo horizonte para a sua vida.
Foram dez anos de flirt mais intenso, não isento de culpas de parte a parte. Entre 2013 e 2014, houve uma primeira manifestação formal de interesse. A "Europa", chamemos-lhe assim, ganha coragem e avança com um acordo de associação para formalizar a futura relação. A Ucrânia entusiasma-se. Foram vinte anos até este primeiro passo para poder mudar, em liberdade, a sua vida. Mas, rapidamente, se perde a coragem. A Rússia enciúma-se e indigna-se com a procura de formalização do primeiro passo da outra relação. Não aguenta e agride violentamente a sua antiga companheira. Ataca-a numa parte sensível do corpo, na região peninsular. Quer mostrar-lhe que as suas pretensões de emancipação lhe farão mal: “Faço isto pelo teu bem, faço-o porque te amo”, diz-lhe.
A Europa recua, não tem coragem de contrariar o agressor. Ele parece forte e ensandecido por um sentimento de posse nunca perdido. A Europa critica a meia voz e amedronta-se. À agressão reage com uma mera condenação escrita, diz que vai aplicar sanções, nada mais. É parca a sua reação. É moderada a sua demonstração de amor à Ucrânia.
Os anos passam e a violência moral e física continuam. Os seus descendentes e a família do lado da Rússia, o costado dos Leste, revoltam-se e iniciam uma batalha de vexação, agressão moral e separação total. Ao ver que ela não se resigna ao papel de vítima e pior (!) que busca apoio junto de um grupo mais alargado de potenciais interessados, chamemos-lhe "NATO", a Rússia desespera, enlouquece, e agride-a ainda com mais violência. Diz que a culpa é dela – “a Ucrânia devia ter-se dado mais ao respeito”. Afirma que a Ucrânia não protegeu devidamente os seus filhos. Acusa-a de ter ligações perigosas, incluindo com nazis, e diz-lhe que está a ficar perigosa. A sua intenção de ser independente, o querer vestir e falar de maneira diferente e de, potencialmente, contrair matrimónio com as tais Europa ou NATO não pode ser consentida.
A Europa e a NATO, potenciais interessados, percebem a fragilidade da Ucrânia. Compreendem que está exposta e solidarizam-se. Almoçam e jantam muitas vezes com ela. Amiúde, vão à sua casa e convidam-na para as suas. Namoram-na, trocam cartas de amor, mas tudo com muito respeitinho, pois temem uma retaliação do abusador que marca sempre o seu território.
A Ucrânia roga à Europa, suplica à NATO, oferece os seus maiores atributos a outros, chamemos-lhe "EUA". Contudo, ninguém tem coragem para assumir de facto um compromisso. Uma relação oficial e estável que faça a Ucrânia sentir-se amada e segura, fazendo-a pensar em ter novos filhos e uma nova família alargada – o costado dos Ocidentais. Os novos pretendentes sabem que, do outro lado, a Rússia continuará a violência e acreditam que ameaça é real: “Se me deixares, eu mato-te e mato-os”, sopra-lhes a Rússia ao ouvido. O costado dos Ocidentais escuta o assopro vindo dos Leste e encolhe-se. A Ucrânia luta, denuncia e grita, tem a solidariedade de todos, mas continuará a ser vítima de violência doméstica – “entre marido e mulher…”, ecoa o mantra das relações (internacionais).
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico