Saúde: as guerras de Adalberto Campos Fernandes que a nova ministra vai herdar
Em três anos, Adalberto Campos Fernandes enfrentou vários desafios e a contestação dos vários grupos profissionais da saúde. A nova ministra terá em mãos muitas destas questões. E uma das mais quentes será a continuidade das negociações com os sindicatos.
Esperava-se que, com a mudança de Governo, no final de 2015, a saúde ganhasse uma folga depois de quatro anos de cinto apertado pela crise financeira e económica. Mas Adalberto Campos Fernandes não teve tarefa fácil. O agora ex-ministro prometeu um Serviço Nacional de Saúde (SNS) mais capaz, com reformas que o deixariam mais sustentável, com novos investimentos e uma maior atenção para com os profissionais.
Entre as primeiras acções que teve estão a criação de uma coordenação para a reforma do SNS, com coordenadores para as áreas dos cuidados de saúde primários, hospitais e cuidados continuados. Mas as reformas têm dado passos modestos. Se é verdade que está em marcha a construção de vários novos centros de saúde, em parceria com as autarquias, e a entrada de mais dentistas e psicólogos e meios de exames de diagnóstico, também é verdade que o número de novas unidades de saúde familiares tem evoluído a conta-gotas e é um dos mais baixos de sempre. Este modelo de organização dos centros de saúde é a bandeira da reforma dos cuidados de saúde primários.
Nos cuidados continuados, o número de camas e equipas tem crescido, mas longe das necessidades. A rede continua a ser insuficiente para dar resposta a todos os que precisam, e o estatuto do cuidador informal, há tanto reclamado, ainda não existe.
A reforma nos hospitais também tem uma visibilidade modesta. Estão em processo de criação os Centros de Responsabilidade Integrada, de hospitalização domiciliária, existem os Centros de Referência e os processos de afiliação. Tudo novos modelos organizativos que permitirão aos profissionais receber incentivos por produção adicional, terem mais autonomia e aumentar a colaboração entre as unidades de saúde.
O objectivo é reduzir as listas e os tempos de espera, assim como o recurso às unidades privadas e do sector social com quem têm convenção para fazer cirurgias. Mas o objectivo do Ministério da Saúde de reduzir a emissão de cheques-cirurgia para o privado em 2017, ano também marcado por várias greves, saiu gorado. O SNS operou o maior número de pessoas de sempre, mas este acréscimo foi em grande parte suportado pelas operações que acabaram por ser feitas nos convencionados.
A questão da procura das urgências é um outro problema. Portugal é dos países europeus com uma das procuras mais elevadas e quase perto de metade destas urgências são casos classificadas como não urgentes, o que significa que poderiam ser atendidos nos centros de saúde. Existem algumas experiências em marcha para melhor seguimento dos doentes de forma a evitar esta preferência pelos hospitais, mas sem efeitos ainda significativos. No ano passado houve uma redução no número de episódios de urgência, mas longe do que era a ambição do ministro.
O ministério e os profissionais
Durante o período de governação de Adalberto Campos Fernandes houve reposição salarial, alterações dos períodos de trabalho semanal, mais contratação e investimento em marcha. Mas não o suficiente para acalmar as criticas e a contestação dos profissionais.
No último ano e meio, Adalberto Campos Fernandes enfrentou greves e concentrações de médicos, enfermeiros, assistentes operacionais, técnicos de diagnóstico e terapêutica. Reclamaram mudanças salariais, alterações de carreira. Só da parte dos enfermeiros, este ano já foram mais de 100 dias afectados por paralisações. Em causa está um processo de negociação que se arrasta há mais de um ano e ainda sem fim à vista.
E se do lado dos médicos este ano ainda só houve uma greve, isso não quer dizer que estejam mais satisfeitos. As negociações também estão num impasse, sobretudo no que diz respeito à revisão salarial, alteração de número de utentes por médico de família e número de horas semanais a fazer na urgência.
Aliás, a existência de um médico de família para todos os portugueses até ao final da legislatura foi uma das promessas deste governo. Mas ainda está longe de ser alcançada. Segundo dados do Portal do SNS deste mês, são mais 749 mil as pessoas que não têm um médico de família atribuído. Os atrasos nos concursos do ano passado para a colocação dos novos especialistas nos centros de saúde mas ainda mais nos hospitais (este demorou cerca de dez meses a realizar-se) foram um dos pontos quentes de tensão.
Assim como a falta de profissionais, médicos, assistentes operacionais com impacto no funcionamento diário dos hospitais. Foram várias as notícias denunciando problemas com equipamentos, assim como da necessidade de mais médicos e enfermeiros, associados ao encerramento de camas e atrasos em cirurgias.
A insatisfação tornou-se mais visível com os vários pedidos de demissão de directores e chefes de serviços de vários hospitais. S. José, Maternidade Alfredo da Costa, Gaia, Amadora-Sintra, Tondela-Viseu são alguns exemplos. Questões que levaram Adalberto Campos Fernandes inúmeras vezes ao Parlamento chamado pelos partidos da direita e da esquerda.
Problemas que o até agora ministro disse serem “pontuais”, preferindo salientar o acréscimo de profissionais no SNS. Embora nas últimas aparições públicas tenha reconhecido que há um atraso no investimento e que há hospitais a funcionar sem terem todos os recursos todos necessários.
A saúde e o dinheiro
A questão orçamental nunca deixou de estar na ordem do dia. As dívidas dos hospitais aos fornecedores mantêm uma evolução ascendente, só contrariada pelas injecções adicionais de capital. Os prazos de pagamento das dividas em atraso mantém-se acima dos 90 dias. O discurso dos administradores hospitalares e dos profissionais é o de lamentar a falta de autonomia e o financiamento aquém das necessidades.
A suborçamentação é reconhecida por vários especialistas dentro e fora da saúde. Mais dinheiro para o sector tem sido também uma das exigência dos partidos que suportam o actual Governo e da oposição. E o tema tornou-se mais polémico quando o então ministro da Saúde veio dizer “Somos todos Centeno”, referindo-se ao ministro das Finanças, quando este defendeu que era preciso ter rigor orçamental e assumiu que não possível dar tudo a todos e ao mesmo tempo. Um recente inquérito, promovido pela Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, revelou que sete em cada dez portugueses consideram que o investimento na saúde é insuficiente.
O Governo decidiu criar uma Estrutura de Missão para a Sustentabilidade Orçamental da Saúde, interligada aos ministérios da Saúde das Finanças. Adalberto Campos Fernandes assumiu publicamente que a ideia tinha sido sua e explicou que esta estrutura irá permitir a identificação de problemas e sugestões de soluções para que as contas dos hospitais sejam mais estáveis. Uma das medidas que deverão avançar no próximo ano é a de dar mais autonomia às gestões hospitalares com as contas mais estabilizadas.
Todos estes são os desafios que se mantêm e com os quais a nova ministra da Saúde terá de lidar. Temas que Marta Temido conhece bem e que acompanhou de perto quando era administradora hospitalar e depois enquanto presidente da Administração Central do Sistema de Saúde. Tem para resolver as negociações com os enfermeiros e restantes profissionais, a continuidade dos investimentos e estabilização das dívidas na saúde. Tem ainda a discussão na nova lei de bases da saúde, já com uma proposta do grupo liderado por Maria de Belém Roseira que esteve em consulta pública. Mas que não agrada a todos, sobretudo à esquerda por não terminar com os modelos de parceria público-privadas.
Fora da lista de problemas está a mudança do Infarmed para o Porto, questão arrumada pelo Governo que passou a decisão para a comissão criada pelo Parlamento que irá avaliar a descentralização de serviços públicos.