A CGTP infiltrou-se em São Bento, mas é só arte contemporânea
A colecção de António Cachola, um economista alentejano, vai ocupar as paredes da Residência de São Bento durante um ano. Dedicada à arte emergente, traz alguma ironia a São Bento através da curadoria de João Pinharanda.
Saem das paredes da Residência de São Bento, em Lisboa, as obras de arte mais institucionais da Colecção de Serralves e entram as mais irreverentes da Colecção António Cachola. Esta é uma montagem “arrojada”, reconhece Kathleen Gomes, assessora cultural do primeiro-ministro.
Nas vésperas do 5 de Outubro, acompanhámos parte da montagem desta segunda iniciativa dedicada à arte contemporânea na residência do primeiro-ministro, intitulada Arte em São Bento – Colecção António Cachola 2018, que parte da vontade de António Costa de ter arte portuguesa mais actual no ambiente em que trabalha e recebe os seus convidados, nacionais e estrangeiros. Não é bem uma exposição, porque as pinturas, esculturas e fotografias misturam-se com o mobiliário nos vários andares do palacete, mas o público pode apreciar as obras de arte uma vez por semana, aos domingos, até ao final do ano, quando o palacete abre aos visitantes, das 10h às 17h.
Mas este 5 de Outubro, feriado em que se comemora a implantação da República, marca também o regresso do primeiro-ministro a São Bento, depois de a residência ter sido submetida a meses de obras e de António Costa se ter mudado temporariamente para o Terreiro do Paço.
No segundo ano em que decorre a iniciativa Arte em São Bento, com a inauguração para o público marcada para esta sexta-feira às 15h, os visitantes vão confrontar-se com 50 obras da Colecção António Cachola, começada a fazer no início dos anos 90 por um economista natural de Elvas, onde a colecção está em permanente exibição no Museu de Arte Contemporânea de Elvas (MACE), uma das experiências pioneiras de descentralizações da arte contemporânea em Portugal feita através de uma colecção privada.
“Fiz tudo com uma certa ironia”, diz o curador João Pinharanda, actualmente director do Centro Cultural Português em Paris (Instituto Camões), escolhido pelo coleccionador para fazer esta curadoria por ter sido o primeiro programador do MACE. Afinal suceder a Serralves, diz o curador, não é uma tarefa fácil, uma vez que a colecção do Porto é institucional e tem uma série de obras históricas de artistas portugueses consagrados, enquanto a Colecção Cachola é marcada por uma maioria de artistas emergentes. As obras expostas mais antigas datam de 1992 – a excepção é a obra de Fernando Calhau, de 1988, o único artista exposto que não está vivo. Mas a juventude da colecção, que cresceu bastante nos últimos anos, acabou por proporcionar "um trabalho mais desafiante", defende o curador.
Os sindicatos de Carla Filipe
Logo no rés-do-chão, num dos espaços mais públicos do palacete, sobre os sofás em que António Costa tem por hábito receber os parceiros sociais ou os partidos, numa altura em que o país discute os aumentos da Função Pública, João Pinharanda escolheu colocar as pinturas O Povo Reunido Jamais Será (2009-2010), de Carla Filipe (Porto, 1973), uma das mais interessantes artistas da sua geração com um trabalho muitas vezes político. “Como aqui é o sítio em que se sentam os parceiros sociais – os sindicatos e o patronato – pensei em fazer esse jogo com os antigos posters sindicais de Carla Filipe.” Apesar da sua história familiar — Carla Filipe vem de uma família de ferroviários —, os cartazes retrabalhados pela artista têm um âmbito mais geral e vêm do arquivo digital da CGTP do Porto. A artista fala nesta obra do enfraquecimento do movimento sindical e o jogo, sublinha João Pinharanda, é que a maior parte das pessoas não vai perceber que esta série de pinturas tem origem em cartazes sindicais: “São incompreensíveis, porque não têm as letras, mas achei que era uma certa ironia estarem aqui. Eles têm um valor plástico em si e para quem não souber também cumprem a sua função porque agridem estes vetustos cadeirões com a sua composição e cromatismo irreverentes.”
Mas há outras “subtis referências visuais" que acompanharão essas conversas e discussões, continua o curador, como a pequena tela com nove centímetros de altura e 24 de comprimento, intitulada Ltd. (2014), que desta vez, também sem fazer qualquer referência real a uma marca, evoca o mundo empresarial. Já o Vogliano Tutto (2016), de André Romão, é uma pintura que recupera uma palavra de ordem da Itália do final dos anos 60, mas tem um significado “universal e utópico”.
Estamos no salão grande de São Bento, a também chamada Sala da Lareira, no lado oposto àquele em que o primeiro-ministro costuma fazer os seus discursos. Por isso, como contraponto à ausência de palavras dos cartazes de Carla Filipe, haverá sempre nas nossas cabeças as “palavras políticas” do primeiro-ministro, sempre proferidas em frente à lareira e que, normalmente, são transmitidas pela televisão. "O espectador contemporâneo, como todos sabemos, é ele e a sua circunstância", afirma João Pinharanda. Já a obra que foi escolhida para ficar em cima da lareira, que serve, assim, de cenário aos discursos de António Costa, é uma pintura de Pedro Calapez, um trabalho abstracto pintado sobre duas caixas de alumínio que não deixa de ser uma reflexão sobre o gesto e a matéria da pintura.
João Pinharanda vê na obra Contraforte (2013), de Calapez, uma paisagem serena, um bom contraponto ao amarelo da pintura de Ângelo de Sousa que Serralves e a então directora Suzanne Cotter escolheram como pano de fundo para os discursos de Costa na última montagem.
Na mesma sala, a pintura DAlmeida e Silva, um artista já nascido nos anos 80, Charo’s Boat (2017), propõe um jogo de leitura mais difícil, evocando a iconografia clássica, com a barca de Caronte e a passagem das almas para o outro mundo: “Aqui na zona do poder funciona como o necessário memento mori. O poder é limitado, é transitório e tem pelo menos um limite que é a vida humana.”
33 artistas
Este ano São Bento vai mostrar o dobro das obras do ano passado, sublinhando a assessora cultural do primeiro-ministro o carácter fresco da curadoria de João Pinharanda. “Como no ano passado estávamos num processo de transição, porque estas paredes ainda não tinham recebido arte contemporânea, a curadoria este ano pôde ser mais arrojada. Acho irreverente ter os cartazes de Carla Filipe. A ironia de que o João Pinharanda estava a falar é a marca desta curadoria e oferece vários níveis de leitura, alguns deles surpreendentes.” A assessora também nota que as obras expostas mais antigas são dos anos 90. “É importante o gesto de valorizar os artistas em actividade.”
Em São Bento, vão estar 33 artistas expostos, alguns com mais de uma obra: além dos seis já mencionados, podemos ver obras de Rosa Almeida, Sofia Areal, AnaMary Bilbao, Paulo Catrica, Rui Chafes, Alexandre Conefrey, Gil Heitor Cortesão, José Pedro Croft, António Júlio Duarte, Alexandre Farto (Vhils), Nuno Gil, Pedro Gomes, João Leonardo, José Loureiro, Ana Manso, Jorge Molder, Carlos Nogueira, Rodrigo Oliveira, Pedro Proença, João Queiroz, Rui Sanches, Julião Sarmento, João Paulo Serafim, Rui Serra, Augusto Alves da Silva, Ana Vidigal e Xana.
João Pinharanda pensou esta curadoria para a residência do primeiro-ministro olhando para a tipologia do espaço: “Parti da ideia que estaria a seguir as salas de um palácio. A curadoria foi pensada a partir das funções dos espaços. A sala de jantar cá de baixo resulta maravilhosamente. Faltava-me um conceito para a casa de jantar e a solução surgiu na montagem como um espaço de festa. Como ainda não tinha mobília por causa das obras, aquilo parecia quase um salão de baile com o chão de mármore.” A grelha metálica da obra de Rodrigo Oliveira, sobre a qual se agrega a tinta colorida, dialoga de uma forma inesperada com os guaches de José Loureiro, em que uma série de rectângulos se agitam sobre o papel branco. São obras já com uma certa dimensão, que acabaram por levar à renovação do mobiliário que estava aqui. “Uma coisa simpática é que houve a possibilidade de deslocar algumas peças que estão cá há décadas. As obras de arte empurram o mobiliário…”
No átrio do segundo piso, antes da antecâmara onde se espera para as audiências com o primeiro-ministro, está outro momento forte com um díptico de Jorge Molder, duas fotografias da série Anatomia e Boxe (1996-97): “Esperam-nos dois rostos austeros ou trocistas – dois olhares, um frontal, outro oblíquo -, encenando uma rejeição ou um julgamento severo dos que vêm aí.” Mas quem depois espera na antecâmara, para matar o tempo, pode ir lendo os rabiscos que Rosa Almeida desenhou em 2001: “great idea”, “fuck the system”, “just being polite”, entre outras frases.
Esta sexta-feira, os visitantes têm até às 19h para espreitar. A entrada, como todos os domingos, é gratuita.