A colecção Cachola entornou-se pelo Arquipélago até às caves

É a maior exposição a partir da Colecção António Cachola, e acontece no Arquipélago, centro de artes em São Miguel

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Na sala dedicada às questões de identidade estão as obras de Jorge Molder, João Leonardo, João Louro, Fernanda Fragateiro ou Susanne Themlitz
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Na primeira sala, a obra de Cabrita Reis, ao fundo, na parede, Ala Norte: uma área dedicada à escultura e relação da arquitectura com a arte.
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À entrada recebem-nos quatro figuras humanas em pose de conquista, junto a uma mola em ferro. Olham para quem olha para eles, atrás têm um monte de terra castanha e pedras que podem cair e desmoronar a qualquer momento. Eles pousam como se fossem arqueólogos junto ao seu mais recente troféu, uma mola que hoje não é nenhum achado mas poderá vir a ser daqui a uns tantos séculos.

A mola paleolítica (2006) de João Maria Gusmão & Pedro Paiva, anuncia o que iremos ver, chama a atenção para a ideia de construção que está implícita na arte, para o que se mostra em espaços como este, o Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, ilha de São Miguel.

Entre as mais de 100 obras de 38 artistas portugueses que se distribuem pelo espaço e reavivam a colecção do economista António Cachola, administrador da Delta Cafés, foi esta enorme fotografia que o curador Sérgio Mah escolheu para abrir a exposição Um Horizonte de Proximidades.

“Se os artistas dizem que isto é uma mola paleolítica, podemos rir”, diz o curador ao Ípsilon. “Mas entramos a interpretar isto no sentido que tem: arqueológico, artificial, efabulatório, questões decisivas para interpretar as obras de arte. As obras de arte não são a vida mas são uma das coisas que os homens e mulheres inventaram para falar sobre a vida”.

Desde Outubro, e até final de Fevereiro, que parte do acervo daquela que é considerada a mais importante colecção privada de arte portuguesa dos últimos 30 anos é mostrada neste edifício. Uma colecção que, aliás, irá receber o prémio de Coleccionismo Privado na próxima feira de arte ArcoMadrid, entre 24 e 28 de Fevereiro. O Arquipélago foi inaugurado no final de Março e é a recuperação de uma antiga fábrica de álcool e de tabaco, feita pelos arquitectos João Mendes Ribeiro, Cristina Guedes e Francisco Vieira de Campos.

Ao longo das várias salas a colecção mostra-se num diálogo que Sérgio Mah construiu tendo em conta essa ideia de conversa, criando “articulações”, “proximidades” e “tensões”. O curador quis que activássemos essa experiência de olhar ao mesmo tempo para mais do que uma obra e para o espaço, de olhar com a memória do que vimos mesmo agora e de olhar a imaginar o que vamos ver a seguir.

“Interessava-me desenvolver um projecto que pudesse potenciar todas as relações que a partir de determinada altura um espectador tem em que olha para uma obra, e olha para outra, ao lado. O que é que acontece?” A ideia “era re-acentuar a importância da experiência da atenção”. No fundo, todas as obras são polissémicas, por isso “se colocar um desenho ao lado de uma escultura vejo certas coisas, se colocar ao lado de um vídeo vejo outras”, afirma. “A visão nunca é pré-definida, restrita, é muito aberta.”

Visita guiada às caves
Voltemos então ao espaço onde, a um domingo, finais de Janeiro, Sérgio Mah está a dirigir uma visita guiada. Numa ilha que tem quase 140 mil habitantes e apenas este centro de arte contemporânea, dezenas de pessoas vieram ver a exposição e ouvi-lo – gente nova e gente mais velha, miúdos também.

José Pedro Croft, com duas obras, abre a primeira sala, uma sala onde está em destaque a escultura e a relação entre arquitectura e arte: Sem Título (2001), um conjunto de 30 gravuras que têm como tema central um cubo e as suas variações de cor e posições; e Sem Título IX (1995), uma escultura de um banco de madeira acoplado a uma placa de gesso.

Pedro Cabrita Reis e as suas 14 portas de vários materiais, coladas na parede para formar Ala Norte (2000), impõem-se de seguida. Nesta sala do volume e da gravidade Rui Sanches com Sagrada Família nos Degraus (segundo Poussin), de 1982, escultura em madeira que parece “entornar” em três dimensões a obra de Poussin (século XVII) onde se inspirou.

No espaço seguinte, Sérgio Mah quis evidenciar as questões da identidade e da intersubjectividade – uma série de 21 fotografias de Jorge Molder, Anatomia e Boxe (1996/1997), dominam o olhar pela dimensão que ocupam; o artista aparece com a sua persona, auto-retratado de diversos pontos de vista, jogando com o tema do boxe e da anatomia. Num dos cantos que está a obra de Fernanda Fragateiro feita a partir da fotografia de uma mulher que, com aparente calma, faz uma tarefa doméstica – no outro canto esta fotografia reflecte-se num espelho partido evocando um imaginário de violência doméstica para a qual aponta o título Público/ Privado – Doce calma ou violência doméstica, 1997 (1995), e estilhaçando qualquer ideia de lar idílico que pudesse ter ficado com o primeiro olhar.

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A escultura Eclipse, de Pedro Cabrita Reis, uma das obras expostas nas caves, lugar que o curador fez questão de ocupar

Atravessando outra sala vemos em grande formato as 11 fotografias de Augusto Alves da Silva que concretizam o tema em foco nesta zona, a paisagem. Mas esta é uma paisagem política que rompe o cenário bucólico de um campo onde pastam vacas e o céu se transforma com o desenho das nuvens - a série 3.16 foi feita na ilha Terceira, em 16 de Março de 2003, quando o então primeiro-ministro português Durão Barroso recebeu os chefes de Estado Tony Blair (Reino Unido), George Bush (Estados Unidos) e José Maria Aznar (Espanha) na base militar das Lages. A cimeira ficou manchada com o nome de guerra porque quatro dias depois, a 20 de Março, dava-se o início da intervenção militar no Iraque, e posterior derrube de Saddam Hussein, que seria mais tarde condenado à morte.

Quem não leia o título desta série reconhece o verde da paisagem e imagina uma parte da ilha a entrar por esta exposição adentro de forma natural, mas a informação da legenda sobre a circunstância contamina imediatamente esse olhar pueril.  

Depois das zonas de circulação que habitualmente têm as paredes vazias, mas onde Sérgio Mah foi espalhando obras, descemos à cave.

E descendo as escadas, momentos depois de atravessar as salas tradicionalmente atribuídas às exposições, também nós iremos andar por entre aquelas paredes em pedra, húmidas, labirínticas, como arqueólogos em busca de molas paleolíticas. Aqui veremos ponteiros de relógio que pararam porque as condições atmosféricas da cave interferiram com a obra (a instalação de Dalila Gonçalves, Sustenido, 2014), veremos mesas, de pernas para o ar, penduradas pela parede e a formarem um Eclipse (Pedro Cabrita Reis, 2009), teremos cuidado a olhar a fragilidade de uns fósforos que foram acesos mas aqui colados na parede (Desenho (horizontal), 2009, de Diogo Pimentão) e confiaremos na aparentemente firmeza da malha de ferro de Rui Chafes (Febre I, de 1997).

A humidade da atmosfera, a penumbra, o som dos passos num espaço que sabemos não ser o habitual para expor arte faz-nos efabular, ainda, a possibilidade de termos sido nós a descobrir os Tesouros submersos do antigo Egipto (2008), de Francisco Tropa, obra feita com três mesas sobre as quais estão esculturas em madeira, areia e panos pretos formando diversos moldes. “Fecha-se”, assim, a travessia de arqueólogos à procura dos nossos tesouros na Colecção Cachola.

Desenhar a maior exposição da colecção
Em Maio, Sérgio Mah visitou o Arquipélago. Conhecendo parte da colecção Cachola e com as fichas das obras na mão, começou por escolher as que gostava, que fossem representativas da colecção, e que funcionassem bem nos Açores.  

Algumas peças já tinham sido expostas no Museu de Arte Contemporânea de Elvas, onde está grande parte da colecção Cachola, ou no Museu Berardo, em Lisboa. De forma intuitiva, desenhou a sequência da exposição das peças sem estar preocupado em seguir determinado artista. Interessava-lhe mais a forma como as obras se relacionavam umas com as outras, como já disse, e “de repente houve peças que foram puxando outras”.

Além disso, Sérgio Mah queria que a exposição funcionasse como um percurso dentro do Arquipélago, que fosse uma maneira de ver o edifício. “Por isso é que, sabendo que o edifício foi uma reconstrução, a primeira sala tem tudo a ver com a ideia de construção e reconstrução”, diz.

Entre a cave e o espaço expositivo havia uma divisão clara, até na selecção das obras – não podia escolher determinado tipo de material, como desenho, para expor nas caves dadas as condições climatéricas. De qualquer maneira, uma obra acabou por espelhar esse constrangimento, a já referida Sustenido. O facto de os ponteiros do relógio terem parado acaba por ter uma leitura do curador: “Quase que questiona certo tipo de prerrogativas que hoje definem os espaços museológicos. Os museus têm que obedecer a critérios de climatização porque as obras têm que ser eternas, duradouras. As obras sofrem com humidade”. Mas a maioria das obras que ali estão “lidam bem com isso”.

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Aqui a sala centra-se no tema paisagem

A ideia de entrar na cave era criar a sensação de “como se entrássemos num espaço em que a noção de tempo se dissipa”, porque é um espaço que tem “muito mais a ver com locais onde se viam obras anteriores à ideia de museu moderno” – por exemplo, as igrejas, os palácios, os conventos, “sítios onde havia obras em que o peso do espaço e da sensação que este espaço tem é convocado”, e em que “o carácter estático e silencioso não significa que as pessoas não sejam desafiadas a colocar em escrutínio a relação com essas obras”.

Estamos nos Açores, um local onde se exibe pouca arte contemporânea, e este museu é único. E esta exposição mostra obras de uma colecção que “melhor pode criar a ideia de uma panorâmica da arte contemporânea em Portugal nas últimas três décadas”, defende o curador. “A colecção tem obras seminais da arte portuguesa e da trajectória de muitos artistas. Mais do que uma característica específica da arte portuguesa – não acho que possa ser definível - o que existe é uma agregação de tendências muito diversificadas e percebemos que, com o tempo, e aparecimento de novas gerações, há mudanças.”

Para Sérgio Mah não há sequer uma escolha controversa nesta sua selecção. Até porque nem sequer “há artistas desconhecidos na colecção Cachola. Mesmo entre os mais novos, quase todos tiveram oportunidade de expor em museus”.

Por ser a maior exposição da Colecção Cachola feita até hoje, como escreve o curador no catálogo, “também por isso é uma oportunidade única: de constituir uma visão actualizada sobre a arte contemporânea em Portugal, quando a maior parte dos museus portugueses se tem furtado à pertinência – à responsabilidade – de apresentação de exposições permanentes da nossa produção artística mais recente, para consumo dos portugueses e dos estrangeiros que nos visitam”.

Sérgio Mah comenta depois ao Ípsilon que não tem havido exposições de arte contemporânea portuguesa de fundo e duvida que outra colecção tenha esta amplitude e diversidade. “Óbvio que há muito mais obras da geração de Pedro Cabrita Reis, José Pedro Croft, Julião Sarmento, Rui Sanches no CAM [Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian] ou em Serralves, mas pensando nas últimas três décadas e nos artistas mais recentes diria que talvez o CAM se aproxime”.

A verdade é que nas suas escolhas “António Cachola tem uma atitude muito ecléctica”, descreve. E num momento em que várias colecções pertenciam a bancos que se desmoronaram – como a colecção da Elipse, de João Rendeiro, a de arte de Ricardo Salgado, e do BES, e agora do Banif – o facto de Cachola não estar ligado a um banco, e de a colecção ser de um privado, acaba por ser uma vantagem. “Uma das coisas que é notável, e que mostra gosto e crença na sua missão, é que mesmo em período de crise a colecção continua [a crescer]. Isso ao mesmo tempo é contra-corrente num panorama em que as colecções privadas e institucionais estão na situação em que estão e as instituições públicas têm orçamentos muito reduzidos”, conclui.

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