O homem ao espelho
O homem vê-se ao espelho porque devemos fazer tudo na nossa vida como se estivéssemos sempre a ser observados, não devemos nunca envergonhar-nos do que fazemos. Olhamos para o espelho com orgulho porque, se agirmos sempre bem, ninguém tem nada a apontar-nos.
Depois de um dia inteiro de praia, de mergulhos infinitos e brincadeiras sem fim, eles tinham alguma dificuldade em chegar a casa, sobretudo porque havia uma subida íngreme para fazer. De nada adiantava dizer que a mãe tinha feito aquela subida gravidíssima, duas vezes, da segunda a empurrar o carrinho do mais velho, em final de tempo. Ambos nasceram em Setembro. Não havia birras, mas havia corpinhos moles sem energia, que caminhavam num passo espapaçado pelo calor e pelo cansaço. Por isso, parávamos e tornávamos a parar e um caminho que se faria em cinco minutos, num passo enérgico, levava horas, com muitos intervalos pelo meio.
A primeira paragem era antes mesmo de começar a subir. Frente a um mupi com uma fotografia de um homem, uma silhueta, a ver-se ao espelho e uma frase de Epicuro. “Faz tudo como se alguém te contemplasse.” Ali ficávamos, com eles a juntar as letras e, de seguida, a fazer perguntas. “O que é ‘contemplasse’? O que é ‘Epicuro’? Por que é que o homem está a ver-se ao espelho?” Então, com jeitinho, puxávamo-los e começávamos a subir e a explicar que Epicuro era um filósofo grego. “O que é um filósofo?” É um homem que pensa sobre o mundo, sobre as coisas, das mais simples às mais complexas. Explicávamos como os gregos tinham sido importantes para a forma como vemos o mundo.
A segunda paragem era à frente da escola primária. “O que é ‘contemplasse’?”, perguntavam já sentados num banco de pedra fria, debaixo da sombra dos pinheiros. É como se alguém nos olhasse durante muito tempo, nos observasse e pensasse coisas boas sobre nós. É alguém que pensa: “Quero mesmo ser como ele ou como ela!”, reforçávamos, dando uma entoação de admiração à frase. E ali ficávamos, uns minutinhos, à espera que ganhassem forças para a última etapa, chegar a casa.
O cartaz, que seria da junta de freguesia ou da câmara, ficou anos largos no mesmo sítio, fazendo parte da nossa rotina do final de dia de praia. Parar, ler, perguntar, responder. A leitura foi ficando mais rápida e as perguntas mais elaboradas. “Por que está o homem ao espelho? Está a olhar para ele próprio e preocupado com o que os outros pensam dele?”
O homem vê-se ao espelho porque devemos fazer tudo na nossa vida como se estivéssemos sempre a ser observados, não devemos nunca envergonhar-nos do que fazemos. Olhamos para o espelho com orgulho porque, se agirmos sempre bem, ninguém tem nada a apontar-nos. “Então, ele devia estar a dar um bom exemplo, a deitar lixo no caixote, qualquer coisa assim…”, dizia um deles, mais prático. “Sim, a ver-se ao espelho está só a mostrar que é vaidoso”, acrescentava o outro, derrubando a nossa tese de um homem bem consigo próprio, invejado pelos outros.
O homem ao espelho permaneceu no seu lugar durante a adolescência deles. O caminho já se fazia connosco a ficar para trás e eles à frente, rápidos, a sentarem-se no banco de pedra à nossa espera — poucos minutos, bem entendido. “Contemplar também pode ser meditar? Não tem que ver com a nossa relação com Deus — nós contemplamo-Lo?” Sim, contemplar pode ser um sinónimo de meditar. Sim, tem que ver com a nossa admiração por Deus, pela Sua obra, pela natureza, pelos outros seres humanos. Nós contemplamos aquilo que Ele fez. E aqui podíamos entrar noutra discussão que se prolongaria depois dos banhos tomados, do peixe grelhado e da talhada de melão: Deus existe?
Com a popularidade que a vila piscatória ganhou, o nosso homem foi substituído por publicidade rotativa, em tudo igual à da cidade. Mas a frase continua a ecoar-lhes na cabeça. Há dias, comentávamos o caso Kavanaugh — o que disse Christine Blasey Ford perante o senado norte-americano. Como, 35 anos passados, os risos dos dois rapazes que a trancaram num quarto, bêbedos, continuavam a ecoar-lhe na cabeça.
Discutimos a diferença como são tratados homens e mulheres. Eles têm desculpa, elas terão de viver com o trauma para sempre. Eles podem rir-se do que aconteceu. “Grab her by the pussy”, aconselhava Trump quando não sonhava ainda com a presidência (ou talvez já sonhasse). Elas vão recordar o riso para sempre. Elas vão ter de continuar a viver numa comunidade que desvaloriza aquilo por que passaram, que lhes diz que a vida dos homens vale mais do que a delas, digo. “Não é verdade!”, exclama o pai.
De repente, deixamos de ser pais e filhos para sermos duas mulheres a debater com dois homens que se recusam a acreditar que não somos todos iguais, que nos acusam de desvalorizar se o caso fosse ao contrário, se um rapaz acusasse uma rapariga de assédio. A forma como vivemos não depende de sermos homens ou mulheres, mas de termos ou não valores, argumenta o nosso filho. “OK, devemos fazer sempre tudo como se alguém nos contemplasse”, conclui a nossa filha. Silêncio. É tempo de levantar a mesa.