Curadores portugueses e estrangeiros preocupados com a situação em Serralves

A avaliar pelas assinaturas de duas cartas abertas e pelos profissionais do mundo da arte reunidos em São Paulo este fim-de-semana, não são só os artistas e curadores portugueses a temer pelo futuro do Museu de Serralves. Ao que o PÚBLICO apurou, nos últimos três anos saíram da fundação mais de 15 funcionários, o equivalente a cerca de 20% do seu quadro de pessoal.

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A exposição de Mapplethorpe em Serralves foi vista por seis mil pessoas em quatro dias Nelson Garrido
A exposição de Mapplethorpe em Serralves foi vista por seis mil pessoas em quatro dias
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A entrada para a zona reservada na exposição de Mapplethorpe em Serralves Nelson Garrido
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Homem em Fato de Poliéster (1980) Nelson Garrido

Muito há ainda a apurar sobre o que aconteceu em torno da exposição de Robert Mapplethorpe no Museu de Serralves, no Porto. Entre o silêncio de João Ribas, o director artístico demissionário, e as respostas breves e, nalguns casos, contraditórias da administração a quem muitos acusam de interferir nos conteúdos da primeira retrospectiva em Portugal deste norte-americano que é já uma figura canónica da arte do século XX, há muito espaço a equívocos e desmentidos.

O que sabemos de factual para já? Sabemos que a exposição, entretanto vista por seis mil pessoas, abriu na passada quinta-feira com menos 20 obras do que o que estava previsto, com acesso a menores de 18 anos condicionado à companhia de um adulto e com duas salas onde só podiam entrar maiores de idade (situação que entretanto foi alterada). Que fotografias deixámos de ver ou foram deslocadas para as duas salas reservadas, e quem decidiu o quê e porquê não foi ainda cabalmente explicado por ambas as partes.

No meio de acusações de censura por ignorar o direito dos visitantes a escolher o que vão ver e por alegadas alterações ao layout expositivo de Ribas, também ele curador de Robert Mapplethorpe: Pictures, a administração diz que o director mostrou exactamente o que quis. O director, esse, permanece em silêncio. O clima de suspeição adensa-se.

A partir do Brasil, onde esteve a participar no primeiro Internacional Weekend da Fundação Bienal de São Paulo (21 a 23 de Setembro), um programa destinado a académicos, directores de museus e outros profissionais do mundo da arte, João Fernandes, curador e antigo director do Museu de Serralves (2003-2012), não tem dúvidas de que a situação que hoje se vive na instituição portuense está a afectar a sua imagem internacional.

“Parece claro que tudo isto traduz um mal-estar grande entre a direcção artística e administração”, diz Fernandes, garantindo que foram já vários os colegas estrangeiros presentes em São Paulo que o abordaram para falar sobre o tema: “As pessoas estão muito preocupadas, a acompanhar e a discutir o que se passa. Isto acontece porque, felizmente, Serralves tem um estatuto internacional como espaço plural, crítico. As pessoas esperam dela outra coisa e isto afecta a sua imagem. Oferecer condições de trabalho e de liberdade a um director artístico é uma das responsabilidades de uma instituição como Serralves.”

Actualmente subdirector do Rainha Sofia, em Madrid, um dos mais importantes museus de arte contemporânea da Europa, Fernandes diz que a demissão de João Ribas do cargo de director artístico era, neste contexto inevitável. “Há ainda muita coisa a explicar, mas penso que não há dúvidas de que a relação entre a direcção e a administração era já problemática, não era saudável. É preocupante ver uma direcção artística condicionada por outro tipo de decisões; é preocupante ver que a direcção e a administração não conseguiram criar a cumplicidade e a solidariedade que fazem funcionar os projectos, as instituições.”

E como interpreta João Fernandes o facto de João Ribas ter aceitado, num clima que, alegadamente, era já de grande tensão, inaugurar Robert Mapplethorpe: Pictures? “Não posso julgar o João Ribas. Imagino que tenham sido momentos de grande nervosismo em que ele quis proteger o projecto da própria instituição e a exposição.”

Nos últimos dias, o PÚBLICO ouviu vários curadores portugueses – Sérgio Mah, Emília Tavares, Delfim Sardo, João Pinharanda – e todos, tal como Fernandes, defenderam a necessidade de absoluta autonomia da direcção artística face à administração e se manifestaram contra qualquer tipo de restrições etárias à exposição de Mapplethorpe.

Lembrando que conteúdos de sexo e violência explícitos estão acessíveis a qualquer menor em plataformas várias, tantas vezes sem filtro e sem contextualização, Delfim Sardo, programador de artes plásticas da Culturgest, defendeu: “O espectador é autodeterminado – decide por si. O que está a acontecer em Serralves é uma instituição a substituir-se à autodeterminação do espectador.”

Entretanto, as duas cartas abertas destinadas à administração da fundação (uma delas apenas à sua presidente, Ana Pinho), que fazem acusações de ingerência no trabalho de curadoria da exposição do artista norte-americano e estão a circular na Internet desde sábado, contam já com várias centenas de assinaturas, incluindo muitos artistas, curadores e académicos portugueses e estrangeiros. O prémio Turner alemão Wolfgang Tillmans, a directora de colecções de arte britânica da Tate, Ann Gallagher, o fotógrafo e curador do Stedelijk Museum de Amesterdão Martijn van Nieuwenhuyzen, e David Getsy, professor do Art Institute of Chicago e autor de dezenas de livros e artigos em que se relacionam, entre outras coisas, arte, cultura queer e estudos de género, estão entre os muitos signatários internacionais. Os realizadores João Pedro Rodrigues e Susana de Sousa Dias, a historiadora de arte da Universidade do Porto Maria José Goulão, e os artistas Ana Vidigal e Vasco Araújo entre os portugueses.

O PÚBLICO tentou durante todo o dia de segunda-feira, sem sucesso, apurar se a administração já se reuniu com o director artístico demissionário. Ao telefone, Isabel Pires de Lima, administradora e um dos três membros da comissão executiva da fundação, não quis prestar declarações.

Não foi, por isso, possível obter esclarecimentos quanto ao número de funcionários que deixaram a instituição nos últimos três anos. Ao que o PÚBLICO apurou, desde que Ana Pinho assumiu a presidência da administração de Serralves, em Janeiro de 2016 – um mandato que terminará no final do próximo mês de Dezembro, e que poderá ser renovado por mais três anos –, já saíram de Serralves mais de 15 pessoas, o que equivale a cerca de 20% do quadro de pessoal da fundação.

Entre as saídas, as mais mediáticas foram as da anterior directora artística, Suzanne Cotter (que se mudou para o MUDAM – Museu de Arte Moderna Grand-Duc Jean, no Luxemburgo); da ex-directora-geral, Odete Patrício, que geriu a casa durante 25 anos, e actualmente é vereadora socialista na Câmara do Porto; mas também de João Almeida, que dirigia o Parque, e de Marta Morais, coordenadora do departamento de Comunicação.

Naturalmente com razões diversas – e cada caso será um caso –, saíram também de Serralves nos últimos três anos coordenadores e responsáveis do serviço educativo e do departamento comercial, designers, técnicos de som, de contabilidade e do gabinete de publicações. Com Sérgio C. Andrade

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