Administração de Serralves em silêncio sobre demissão de João Ribas
O presidente da Fundação Robert Mapplethorpe considerou "egoísta" e "pouco profissional" a decisão de João Ribas. Artistas e académicos protestam numa carta aberta contra a "censura" da exposição dedicada ao fotógrafo norte-americano.
A administração da Fundação de Serralves mantém o mais absoluto silêncio sobre o pedido de demissão que ao princípio da noite de sexta-feira lhe foi enviado por João Ribas, o director do museu de arte contemporânea da instituição, na sequência de desentendimentos graves acerca das limitações impostas ao acesso dos visitantes a imagens de "carácter eventualmente chocante" incluídas na retrospectiva Robert Mapplethorpe: Pictures, que o próprio comissariou. A interdição de uma parte da exposição a menores de 18 anos e a exclusão forçada de algumas obras levaram João Ribas a considerar que "já não tinha condições para continuar à frente da instituição".
A notícia, avançada pelo PÚBLICO em primeira mão, não mereceu até ao momento qualquer comentário daquele órgão, presidido desde 2015 por Ana Pinho. A administração limitou-se a reiterar, pelas 13h deste sábado, a garantia de que "não retirou nenhuma obra" e de que "todas" as 159 imagens de Robert Mapplethorpe incluídas na exposição foram "escolhidas pelo curador". Num comunicado enviado às redacções, a administração sublinha ainda, contrariando declarações de João Ribas feitas ao PÚBLICO ainda antes da inauguração da retrospectiva, que "desde o início" estava previsto que "as obras de cariz sexual explícito" fossem instaladas "numa zona com acesso restrito": "Dado o teor de várias das obras expostas e sendo Serralves uma instituição visitada anualmente por quase um milhão de pessoas de todas as origens, idades e nacionalidades, incluindo milhares de crianças e centenas de escolas, a Fundação considerou que o público visitante deveria ser alertado para esse efeito, de acordo com a legislação em vigor", lê-se no referido comunicado.
João Ribas, que também permanece incomunicável, tendo reservado para mais tarde um esclarecimento detalhado das razões por trás da sua decisão, já não participou esta manhã na visita guiada à exposição que deveria conduzir com o presidente da Fundação Robert Mapplethorpe. Em declarações aos jornalistas no final da visita, Michael Ward Stout mostrou-se "chocado" com a demissão do director do Museu de Serralves, que assumiu as funções há menos de oito meses, considerando "egoísta" e "pouco profissional" o timing da sua saída. Michael Ward Stout disse também ter sido informado pela administração de que a decisão de retirar certas imagens da exposição fora do próprio director artístico e não do órgão presidido por Ana Pinho: "Não sei por que é que o João retirou as fotografias, não faz sentido nenhum."
Recorde-se que, numa conversa com o PÚBLICO a propósito da exposição, Ribas dissera há mais de duas semanas que esta mostraria 179 obras de Mapplethorpe, número reiterado pela própria instituição num comunicado de imprensa enviado na sexta-feira às redacções, já após a inauguração da retrospectiva. Afinal, são apenas 159 as imagens expostas, tendo 20 das obras inicialmente previstas ficado de fora. As razões da sua exclusão permanecem por explicar, tendo as perguntas enviadas pelo PÚBLICO à administração de Serralves na tarde de sexta-feira ficado sem resposta. Já este sábado o PÚBLICO tentou repetidamente, e sem sucesso, obter esclarecimentos junto de quatro membros do conselho de administração, incluindo a sua presidente.
"Puritanismo"
Entretanto, está a circular na Internet uma carta aberta dirigida a Ana Pinho, em que os signatários (a meio desta tarde eram já cerca de 200), entre os quais se contam o artista João Pedro Vale e o cineasta João Pedro Rodrigues, protestam contra a “censura” da exposição Robert Mapplethorpe: Pictures, patente na exclusão de 20 trabalhos do conjunto inicialmente previsto pelo comissário e director João Ribas e na interdição da entrada de menores de 18 anos em certos espaços da exposição.
A carta lembra a Ana Pinho que foi precisamente explorando os temas do erotismo, do sexo e da sexualidade que Mapplethorpe, sempre disposto a experimentar tendo a fotografia como meio e linguagem, se tornou uma figura canónica da arte americana da segunda metade do século XX.
Evocando as duas grandes exposições recentes da obra de Mapplethorpe em Los Angeles, os signatários desta carta promovida por João Florêncio, professor de História de Arte e de Cultura Visual Moderna e Contemporânea na Universidade de Exeter, no Reino Unido, lamentam que a obra do artista volte a ser “censurada” à semelhança do que aconteceu nos Estados Unidos nas décadas de 1980 e 90, durante as chamadas “guerras culturais” promovidas por políticos conservadores, com o senador republicano Jesse Helms à cabeça. “É com tristeza que continuamos a ver o seu trabalho ser censurado por instituições como Serralves com base em critérios que, suspeitamos, são puramente morais.”
A carta aberta, escrita em inglês para que mais facilmente chegue a potenciais signatários estrangeiros, defende ainda que “decisões executivas destinadas a censurar” nada contribuem para o “debate legítimo” em torno das fronteiras da arte e da pornografia.
“Vivemos numa época de profunda incerteza política com a emergência de um populismo de direita, do ultranacionalismo e de ameaças às liberdades artísticas e académicas. Neste contexto, é profundamente triste que a Fundação de Serralves tenha perdido a oportunidade de manter os valores que deviam sustentá-la enquanto casa de cultura, pensamento e liberdade e tenha escolhido sucumbir ao puritanismo moral e ao conservadorismo social”, conclui a carta.
Entre os artistas e curadores que já manifestaram o seu repúdio pelo sucedido no Museu de Serralves está o fotógrafo português Daniel Blaufuks, que deveria conduzir uma visita à exposição do artista norte-americano em Novembro, mas decidiu agora não o fazer. "Por considerar absolutamente inaceitável as noticiadas restrições na exposição de Robert Mapplethorpe, venho por este meio cancelar a visita guiada", escreveu nas suas páginas das redes sociais Facebook e Instagram.
Ao semanário Expresso, Blaufuks mostrou-se surpreso com a atitude do museu, sobretudo depois de o curador ter dito já que a exposição não teria zonas interditas. Lembrando em seguida que na quinta-feira à noite houve uma visita guiada durante a inauguração feita pelo próprio João Ribas, o fotógrafo questionou-se ainda por que nada foi então dito e por que razão o comissário e director do museu esperou até ao dia seguinte para anunciar a sua demissão.
Ministério não comenta
Contactado pelo PÚBLICO ao final da manhã para que se pronunciasse sobre as alterações à exposição de Robert Mapplethorpe e a demissão de Ribas, o gabinete do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, reagiu assim: “Trata-se de uma questão entre o director artístico do Museu de Serralves e a administração da Fundação. O Ministério da Cultura não comenta decisões que são da responsabilidade das fundações e das suas administrações. O Ministério da Cultura não comenta também as decisões e opções dos directores artísticos.”
A avaliar pelas declarações feitas à Lusa, António Filipe Pimentel, director do Museu Nacional de Arte Antiga e subdirector-geral do Património, está entre os que considerariam natural que o gabinete de Castro Mendes se pronunciasse. "Acho peculiar tudo isto [em Serralves], e como cidadão aguardo melhor informação, porque me falta matéria para entender o que se passou", disse à Lusa, sublinhando "o facto de se tratar de uma fundação privada sim, mas com capitais públicos", e acrescentando que o ministério "investe mais [em Serralves] do que em todos os museus públicos nacionais."
É precisamente porque tem financiamento do Estado português, e porque se trata de um dos museus mais importantes do país, que este episódio em Serralves assume especial gravidade, defende também o Bloco de Esquerda (BE), que este sábado apresentou um requerimento para que o director demissionário seja ouvido na comissão parlamentar de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto.
Para os bloquistas, "o conservadorismo não é critério de avaliação artística" e "não pode substituir-se à curadoria de uma exposição". O conselho de administração de uma instituição, adverte ainda o BE, também não pode comportar-se como "um órgão de censura da direcção do museu" que tutela.
Ana Pinho termina o seu primeiro mandato como presidente do conselho de administração de Serralves dentro de pouco mais de três meses. Segundo os estatutos da fundação, pode ser reconduzida por apenas mais um triénio.
Uma administração que "mente e coage"
Para este domingo, às 11h, está marcado um encontro na porta do Museu de Serralves para a entrega de uma segunda carta aberta, desta vez dirigida a todo o conselho de administração da fundação. Nela se exige aos oito membros que o compõem que se demitam ou, caso considerem não haver “censura”, procedam ao contraditório.
Esta última carta, que diz ainda que a administração mentiu ao afirmar que foi Ribas quem decidiu retirar algumas obras da exposição, deixa também um recado ao curador: “O Director Artístico não deveria ter permitido a prévia censura a uma exposição da qual assumiu a curadoria, mesmo que tenha sido coagido a fazê-lo. A exposição não poderia ter inaugurado desta forma. Há falta de coragem.”
Acrescentando que é público que a actual Presidente está a transformar Serralves num "espaço acrítico", os signatários são peremptórios: “Não queremos uma administração que censura, mente e coage. Não queremos um museu que não assegura o Estado de direito democrático nem os direitos fundamentais dos cidadãos [...]. Este museu também é nosso.”
Notícia alterada às 22h20: o "manifesto" a entregar este domingo em Serralves é, afinal, uma segunda carta aberta, e o seu conteúdo foi já dado a conhecer.