Ivo Rosa ou Carlos Alexandre: um juiz mais ao mar e o outro mais à terra

Um deles ficará responsáveis por decidir se os arguidos da Operação Marquês vão a julgamento. Ambos nasceram em meios pequenos e no seio de famílias humildes. E os dois tornaram-se juízes com apenas 26 anos. Mas é muito mais o que os distancia do que os une.

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Ivo Rosa (à esquerda) e Carlos Alexandre Sérgio Lemos/Correio da Manhã e Nuno Ferreira Santos

Ambos nasceram e cresceram em meios pequenos e no seio de famílias humildes. Os dois tornaram-se juízes com apenas 26 anos. Também partilham a mesma nota na última avaliação a que foram sujeitos: Muito Bom. Mas as semelhanças ficam-se por aí. Falamos dos juízes Carlos Alexandre e Ivo Rosa, os dois únicos magistrados judiciais do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), onde desaguam os casos de criminalidade mais complexa e mais violenta do país. Um deles fará a instrução da Operação Marquês, um caso de corrupção centrado no ex-primeiro-ministro José Sócrates, acusado de 31 crimes.

Esta fase facultativa pretende avaliar se há indícios suficientes para levar os acusados a julgamento. E se se concluir que é mais provável os suspeitos serem absolvidos, o juiz de instrução encerra o processo. Apesar dessa decisão ser recorrível, reveste-se de importância para o processo. E por isso a imensa curiosidade sobre a qual dos juízes calhará, por sorteio electrónico, a instrução do processo. As defesas de Sócrates e de alguns dos 28 acusados até já pediram para assistir ao carregar do botão e os advogados do antigo primeiro-ministro até querem levar um técnico para acompanhar o acto. A diligência ainda não tem data marcada, mas pode acontecer a qualquer momento.

Numa coisa advogados de defesa e procuradores concordam: a decisão instrutória será completamente diferente consoante o juiz que a assinar. Para sustentar essa convicção generalizada basta olhar para o registo histórico de decisões dos dois juízes. Tanto durante as investigações, em que o Ministério Público é o dono do inquérito, e o juiz só intervém para garantir o respeito pelas liberdades dos arguidos: autorizando ou não escutas telefónicas e aplicando medidas de coacção; como na fase de instrução, em que analisa, de forma sucinta, as provas que sustentam a acusação e os argumentos das defesas.

Carlos Alexandre, 57 anos e natural de Mação, tem por tendência autorizar as diligências pedidas pelos procuradores e levar a julgamento os suspeitos acusados pelo Ministério Público. Exemplo disso são os casos de corrupção vistos gold e Face Oculta ou a alegada burla nas contrapartidas dos submarinos. Já Ivo Rosa, um madeirense de 52 anos, é conhecido por não autorizar muitas das solicitações dos procuradores, invalidando até alguns dos actos levados a cabo pelos titulares da acção penal. Tal aconteceu inúmeras vezes na investigação às rendas pagas pelo Estado à EDP em que o juiz não autorizou buscas ao ex-ministro Manuel Pinho, tendo invalidade igualmente a sua constituição como arguido. O juiz madeirense também já decidiu não levar a julgamento casos que lhe passaram pelas mãos desde que chegou ao tribunal central, em Setembro de 2015. Isso mesmo aconteceu no processo que envolveu quatro quadros da TAP suspeitos de ajudar a branquear dinheiro da elite angolana. Noutros Ivo Rosa reduziu o número de acusados (no esquema de corrupção nas messes da Força Aérea poupou ao julgamento 18 dos 86 acusados) ou diminuiu de forma significativa os crimes que lhe eram imputados (resumiu a falsificação de documento e contrafacção os crimes imputados ao marroquino acusado de oito crimes ligados ao terrorismos por pertencer e recrutar para o Estado Islâmico em Portugal). As posições do juiz já lhe valeram várias participações de procuradores ao Conselho Superior de Magistratura e uma catadupa de recursos para a Relação de Lisboa, muito dos quais alteram as suas decisões.

Se Carlos Alexandre é um rosto conhecido da opinião pública, Ivo Rosa ainda é um desconhecido para muitos. Ivo Nelson de Caires Batista Rosa nasceu no pequeno município de Santana, no Norte da Madeira, em 17 de Setembro de 1966. Era o quarto filho de um casal remediado que teve cinco rapazes. O pai era funcionário da câmara local e a mãe doméstica. Na sua juventude, os pais separaram-se e Ivo cortou relações com o pai, que deixou a mãe sozinha a financiar a casa. Isso mesmo recorda José Prada, 82 anos, que foi conservador do registo civil em Santana e compadre do pai. “Quem aguentou o Ivo com muitas dificuldades foi a mãe, que ia sobrevivendo graças às rendas de umas propriedades em Santana”, explica José Prada.

Um clique no 12.º ano

Ivo trocou Santana pelo Funchal para continuar a estudar e, em 1985, rumou a Coimbra para estudar Direito. O próprio juiz contou numa entrevista à RTP Madeira, exibida em Setembro do ano passado, que só tomou a decisão de ser magistrado no 12.º ano. O clique deu-se quando uma amiga que tinha o pai advogado o levou a assistir a um julgamento no Funchal. Gostou da encenação. “Foi o momento que me despertou a atenção”, disse na entrevista ao canal de televisão, onde trabalha como jornalista um dos seus irmãos.

Quando viajou para Coimbra, já tinha a intenção de ser juiz. Paulo Prada, o filho mais velho de José, foi seu colega de faculdade. E estudou muitas vezes pelos seus apontamentos. “Eram óptimos. Ele era um bom aluno e ia muito às aulas, o que não acontecia com muita gente em Coimbra”, explica. “Tinha uma letra enorme, que se lia muito bem”, recorda. Descreve-o como um jovem regrado e caseiro. Só pontualmente saía à noite e não embarcava habitualmente na folia conimbricense. “Era muito certinho”, resume.

No final do curso, em 1990, voltou à Madeira e esteve para estagiar advocacia no escritório de José Prada. “Acabou por não estagiar porque foi trabalhar para os correios”, conta o octogenário. Ainda foi jurista na Câmara do Funchal, mas regressou ao continente depois de entrar no Centro de Estudos Judiciários, onde se formam os juízes. Em 1993, voltou ao Funchal já na qualidade de juiz estagiário. Segundo os registos do Conselho Superior de Magistratura foi no Tribunal de Vimioso, em Bragança, que teve o primeiro lugar como efectivo. Mas por apenas uns meses. Em 1995 regressa à Madeira para o tribunal de Ponta do Sol. E no ano seguinte volta ao Funchal, primeiro para o tribunal criminal e depois para o de trabalho. Em 1999 regressa um ano a Lisboa, mas volta mais dois anos à Madeira, de onde sai em definitivo em 2002.

José Prada e o filho com o mesmo nome, ambos advogados, cruzaram-se várias vezes com Ivo Rosa na barra dos tribunais madeirenses. “É uma pessoa muito trabalhadora, seríssima e isenta”, descreve o pai. Recorda-se de um colega advogado ter participado dele ao conselho que tutela os juízes e de lhe ter sido instaurado um processo disciplinar, mas não se recorda bem do motivo. “Eu fui chamado a testemunhar”, lembra, certo de que o caso terminou arquivado. Sobre esta e outras participações o PÚBLICO pediu dados ao Conselho Superior de Magistratura que se negou a disponibilizar qualquer informação com a justificação de que as “queixas disciplinares são matéria reservada”.

Nos julgamentos, diz o octogenário, era um juiz interventivo, que não deixava os advogados passarem determinadas fronteiras. José Prada filho, que ainda hoje mantém contacto com o juiz quando este visita a Madeira no Verão e no Natal, sublinha-lhe a pontualidade. “Nunca tinha processos atrasados e estudava bem os casos”, relata o amigo. E completa: “É um juiz dono do seu nariz que não se deixa influenciar nem pelo Ministério Público, nem pelos advogados”.

Polémicas

Sem nunca se ter casado e sem filhos, em 2006 embarca numa aventura assumindo um lugar de juiz em Timor Leste, num programa das Nações Unidas. Primeiro num tribunal de primeira instância e depois no de recurso. Mas a experiência acabou de forma conturbada no início de 2009, após o conselho da magistratura timorense ter decidido não lhe renovar o contrato. Segundo o próprio, a decisão foi tomada no dia em que se tornou público que um acórdão em que era relator declarara inconstitucionais as normas do Orçamento Rectificativo de 2008. “Fui despedido devido a decisões que tomei no âmbito das minhas funções, (…) que não foram do agrado do poder político”, interpreta o próprio na entrevista à RTP Madeira.

Em 2009 regressa às Varas Criminais de Lisboa, onde se julgam os processos penais mais graves, e torna-se persona non grata dos procuradores com quem trabalhava, como contaram vários ao PÚBLICO. O motivo: profundas divergências na forma como Ivo Rosa avaliava a prova, essencialmente, nos processos em que era relator. Os colectivos a que presidia tinham tendência para absolver ou para atenuar a gravidade dos crimes e aplicar penas leves. “Quando tínhamos um caso em que ele era o relator, já sabíamos que ia acabar em recurso”, recorda um dos procuradores.

O erro mais grave que lhe apontam foi a absolvição, em 2010, de 11 dos 12 elementos do chamado gangue do multibanco, fundamentada pela inexistência de prova directa. Acusados de uma panóplia de crimes desde associação criminosa, a roubos e furtos qualificados por assaltarem caixas automáticas, apenas um membro foi condenado, mas por tráfico de droga. Os juízes da Relação de Lisboa, que anularam a decisão da primeira instância e mandaram repetir o julgamento com outro colectivo, dizem que “é com um misto de incompreensão e perplexidade” que tentam entender as absolvições e falam de “erro grosseiro e ostensivo” na apreciação da prova. Dizem que Ivo Rosa e os colegas levaram “ao exagero” o princípio de que a dúvida beneficia os suspeitos e que se impunha “uma valoração conjunta de todas as provas” à luz das “mais elementares regras da experiência, aqui bem ao alcance do cidadão comum!” Em Abril de 2012, no segundo julgamento, foram condenados oito dos 12 elementos do grupo, cinco dos quais a penas de prisão efectivas.

Mas este foi apenas um dos casos. As decisões dos colectivos presididos por Ivo Rosa eram frequentemente contestadas nos tribunais superiores, havendo procuradores conhecidos por terem uma taxa de sucesso muito próxima dos 100% nos recursos.

Há quem realce outro aspecto. A teimosia de Ivo Rosa em aceitar cumprir as decisões dos tribunais superiores, tentando contorná-las e dando azo a novos recursos no mesmo caso. Exemplo disso é o caso de um acidente rodoviário em que um condutor acabou condenado por homicídio por negligência e omissão de auxílio, numa pena de dois anos e três meses de prisão suspensa. O Ministério Público recorreu e a Relação aumentou a pena para três anos e meio de cadeia, desta vez efectiva. Apesar de no texto do acórdão isso ficar claro, na conclusão não se refere a palavra “efectiva”, o que levou Ivo Rosa a recusar emitir os mandados de detenção para o arguido cumprir a pena. No novo recurso para a Relação, o procurador insurge-se contra o magistrado madeirense e lembra que o próprio arguido recorreu para o Supremo para tentar evitar a cadeia. Diz que a decisão de Ivo Rosa “manifestamente desrespeita um tribunal superior”, sugerindo até a apreciação disciplinar do comportamento.

Também Carlos Manuel Lopes Alexandre, o mais novo de três irmãos, já foi alvo de participações disciplinares. Mas os queixosos foram normalmente arguidos, como aconteceu com José Sócrates que lhe imputou falta de isenção. No entanto, entre advogados e magistrados, também há quem considere que o juiz, filho de um carteiro e de uma cerzideira, devia analisar com mais distanciamento as posições do Ministério Público. Mas a verdade é que o próprio sempre se gabou de ter uma minoria de decisões revogadas pela Relação. No TCIC os funcionários não se recordam do Ministério Público recorrer de uma decisão de Carlos Alexandre, já de Ivo Rosa, só no último ano, os procuradores terão apresentado “algumas dezenas” de recursos. Será caso para dizer: nem tanto ao mar, nem tanto à terra.

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