O charme discreto da violência verbal
O problema é que isto destrói a possibilidade de se ter debate sérios e produtivos sobre os problemas em causa.
Pode um milionário ser de esquerda? Pode um ecologista ter um carro diesel? Pode um apoiante dos direitos dos trabalhadores apanhar um Uber? Pode um defensor da escola pública ter os filhos num colégio privado ou um defensor do Serviço Nacional de Saúde ir a uma consulta médica privada?
Há uma categoria de pessoas que quer que se responda a estas perguntas com um “sim” ou com um “não”. E querem que com esse “sim” ou esse "não” se faça doutrina para cima e para baixo na escala da gravidade e das consequências de cada uma dessas atitudes. A intenção é clara: quem responder que não às perguntas acima submete os seus comportamentos a um tal grau de exigência que jamais se poderá pronunciar sobre qualquer hipocrisia ou incoerência de outrem. Achas chocante a hipocrisia do político x? Mas tu és vegetariano e um dia comeste pizza com presunto, não podes falar. Se a resposta for sim, então a comporta fica aberta a todo o tipo de comportamento imoral porque supostamente não há, nem deve haver, qualquer ligação entre as ideias que uma pessoa defende e a forma como se comporta. Se um ecologista conduziu um carro diesel e isso é admissível, então também pode ser dono de uma mega-indústria poluente e efetuar todos os dias descargas para o Tejo. A lógica é a mesma, certo?
Não. A lógica não é a mesma porque não há só dois tipos de coerência: de um lado, a continuidade rígida, total e absoluta em todos os mínimos aspectos da vida de cada um ou, do outro, a desconexão total entre aquilo que dizemos e aquilo que fazemos. A lógica só é a mesma para aqueles simplórios que acham que a lógica é uma coisa a usar para envergonhar adversários e calar argumentos opostos num texto nas redes sociais ou numa coluna de uns milhares de caracteres a enviar à hora certa para o jornal. Para quem reconhece a lógica e o raciocínio como um esforço para chegar a bons argumentos que possibilitem uma vida melhor em sociedade, então, há mais critérios a ter em conta, dos quais os mais importantes são: o grau da incoerência em causa, o contexto, a intenção e a intensidade do discurso. Tudo isso tem importância e, quando acumulado, pode ajudar-nos a entender que a suposta incoerência não existe ou é irrelevante ou, pelo contrário, que existe e é arrasadora para quem a pratica.
Chegado a esta altura, o leitor já terá percebido que esta crónica é sobre o assunto do momento — o caso do vereador do BE Ricardo Robles e do seu investimento especulativo em imobiliário (a não ser que acreditemos que as definições de "especulação” mudaram magicamente para a esquerda depois da notícia ter saído) — e achará que estou a evitar tocar verdadeiramente no assunto. É verdade. Estou a evitar tocar no assunto não por nenhuma das razões do costume, como evitar dar à direita pretextos para atacar alguém de esquerda (o que acaba por dar à direita o pretexto de atacar a esquerda, corretamente, por silenciar um assunto que envolva um dos seus) mas por uma razão mais pessoal: durante anos fui alvo da violência verbal de muita gente no BE que transformava diferendos políticos em ataques de carácter (“ele quer é tacho”, “vai entrar no PS”, “tem lugar prometido”, etc.), gente essa que nos últimos dias tem andado afadigada a inventar que sempre acharam que “especulação” e “incoerência” não inclui o tipo preciso de investimento que o dirigente do seu partido fez, ou de incoerência que ele revelaria, mas ainda inclui todos os outros tipos de investimento com que costumavam atacar (e mal passe a borrasca, querem continuar a atacar) outros adversários políticos, umas vezes bem, outras vezes mal. E, dado o contexto, dou a mim próprio o direito de não dizer tudo o que sinto sobre este tipo de piruetas verbais e políticas — exceto para acrescentar que, ao contrário do que se poderia pensar, não é gozo.
Direi então apenas isto: o problema está no vício, no enamoramento, que certos tipos de políticos têm pela violência verbal, e na cultura que o BE foi fazendo dela durante anos. A violência verbal fez com que no debate da habitação em Lisboa acabassem por aparecer como cúmplices do capitalismo especulativo e agentes do esvaziamento da cidade qualquer pessoa que usasse a sua casa em alojamento local, qualquer estrangeiro que viesse para cá viver, qualquer político que se apresentasse a terreiro com mais do que um chavão sobre o problema. A violência verbal atrai quem a pratica porque auto-purifica. Por inerência, os outros é que são os cúmplices, mesmo que não comprem prédios para vender com lucro de 470%. Quem a pratica, contudo, já se auto-absolveu, e por isso é incapaz de ver a sua própria incoerência. Como nos tempos em que se podia ser tão burguês quanto se quisesse, desde que se fosse mais violentamente anti-burguês do que os outros todos.
O problema é que isto destrói a possibilidade de se ter debate sérios e produtivos sobre os problemas em causa, destrói a credibilidade da política como um todo e, como é um vício e aos vícios volta-se sempre, não tenho a mínima esperança de que se aprenda com este episódio.