Dois directores, duas opiniões sobre a nova proposta para os museus e monumentos
Um homem e uma mulher, um dirigindo uma “unidade singular” em Beja, a outra uma “compósita” em Guimarães; a primeira deficitária em termos de receita, a segunda não. O que dizem eles sobre a nova proposta do Ministério da Cultura para dar autonomia de gestão a museus e monumentos?
“Os museus não são empresas”
No Museu Regional de Beja há quase 30 anos, Francisco Paixão, que faz as vezes do director que a casa não tem, vê a nova proposta de autonomia com preocupação.
De acordo com o diploma, este museu, hoje tutelado pela Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (Cimbal), estrutura que reúne 13 autarquias, passará para a dependência da Direcção Regional de Cultura (DRC) do Alentejo, o que, segundo Paixão, tornará a sua vida ainda mais difícil. “Nós contávamos que saísse da Cimbal para passar para as mãos da cidade, onde aliás já esteve”, diz este técnico superior especializado em museologia, lembrando que, na génese do museu regional, instalado no Convento da Conceição desde 1927, está a colecção de Frei Manuel do Cenáculo, cerne do “primeiro museu público em Portugal” (1791), e o núcleo arqueológico que dela viria a nascer nos Paços do Concelho. Com a passagem para a autarquia, Paixão esperava menos burocracia, mais acesso aos recursos autárquicos em termos de mão-de-obra técnica para resolver os problemas do dia-a-dia, mais celeridade nas decisões.
“Numa direcção regional tudo vai demorar mais tempo, não teremos, como agora, o apoio da câmara de Beja para pequenas intervenções, com engenheiros, arquitectos e técnicos à mão. Teremos de esperar muito por cada autorização, por mais insignificante que seja o pedido”, acrescenta Francisco Paixão, que encabeça uma equipa de 15 funcionários, distribuída pelos três núcleos do museu.
O técnico garante, ainda, que na sua equipa diminuta não há ninguém com competências financeiras ao nível do que a autonomia de gestão exige e que a capacidade de gerar receita do museu é pequena, o que, na leitura que faz da proposta de decreto-lei, condicionará o orçamento ainda mais. Com entradas a dois euros e pouco mais de 20 mil visitantes/ano (boa parte deles não paga bilhete ou paga apenas metade), depende muito das parcerias de proximidade, potenciadas com uma ligação mais directa à autarquia.
“Os museus não são empresas e este documento parece sugerir que são. Os museus vão passar a ter gestores como directores, ou pessoas que percebem das colecções? Sei que, hoje, um director não pode ser um ratinho das bibliotecas e dos arquivos, mas também não pode ser um contabilista, um gestor. Não tenho sequer os técnicos com formação em inventário e conservação e restauro a trabalhar nas suas áreas porque, ou os punha a fazer guardaria, ou fechava a porta, quanto mais um gestor.”
Um “sim convicto”, mas com dúvidas
Isabel Fernandes esteve 12 anos à frente do Museu Alberto Sampaio, em Guimarães, e, depois de um interregno para doutoramento, regressou. Chefia esta instituição afecta à Direcção Regional de Cultura do Norte (DRC Norte) desde 2014, quando a ela estavam já associados o Paço dos Duques de Bragança e o Castelo de Guimarães, formando um núcleo patrimonial que encaixa na designação de “unidade orgânica compósita” que a proposta de decreto-lei para a autonomia de gestão veio agora criar.
Apesar de ter sido reconduzida no cargo há apenas dois meses, depois de entrar em vigor o diploma terá de se sujeitar a novo concurso público internacional se quiser continuar em funções, algo que não a preocupa. “Sempre que há mudanças destas é normal abrir concurso e é muito positivo que passem a poder candidatar-se pessoas de fora da administração pública e até vindas do estrangeiro”, disse ao PÚBLICO a directora com formação em História e especializada em cerâmica, sublinhando que este agrupamento de Guimarães – o único da nova proposta a incluir um museu, um monumento e um palácio – já existe no quadro da DRC-Norte há seis anos e tem uma receita superior à despesa.
Isabel Fernandes saúda no documento a “valorização dos museus”, a “relativa autonomia” que concede, a limitação de dois mandatos dos directores, “para evitar que caiam na rotina” (no máximo, podem sê-lo durante dez anos), e a existência de um conselho consultivo em cada unidade com a responsabilidade de a ligar à comunidade e ao território de que faz parte, mas nem por isso deixa de levantar algumas dúvidas.
“No global, é um sim convicto ao documento, mas isso não quer dizer que não tenha algumas reservas e que não sinta que podia ir mais longe, nomeadamente na gestão financeira. Tenho pena, por exemplo, que os museus não passem a ter número de contribuinte próprio para que possam, de facto, tomar decisões sem ter de responder à sua tutela directa, que aqui é a DRC Norte”, explica esta responsável. Uma DRC, diz, que também tem muitas carências de pessoal de gestão.
A conservadora lembra ainda que na sua equipa não dispõe de ninguém com competências na área e que, actualmente, pode fazer um documento de despesa, mas não tem sequer como o inserir no programa de contabilidade da DRC Norte: “Esta autonomia é claramente melhor que autonomia nenhuma, sobretudo porque permite uma afectação directa da receita aos museus e monumentos, mas não os torna menos dependentes da DRC ou da DGPC. Se aqui quero submeter uma despesa no sistema, não posso, tem de ser feito no Porto.”
Isabel Fernandes diz ainda que há directores de equipamentos, sobretudo os que fazem menos receita, que não verão com bons olhos a proposta e que esta devia ser submetida a um período de teste, em que seria aplicada a equipamentos-piloto. “Há coisas que ainda não percebo – como posso eu, enquanto directora, ser responsabilizada pela gestão financeira se nem número fiscal tenho, se não sou eu que faço essa gestão? Como posso ser responsabilizada, por exemplo, por uma auditoria do Tribunal de Contas?”
Ficam as perguntas.