O impossível
O Paulo pôs as coisas nestes termos: se tu não fores, eu também não vou. E eu não queria ir. Nunca quis voltar a Pedrógão Grande. Mas ele disse aquilo e tive de ir. Exactamente como aconteceu há um ano. E se ia, tinha de escrever. Se íamos, como ele queria, percorrer os caminhos que fizemos a 18 de Junho de 2017, um dia depois das mortes, no dia em que descobrimos o horror que por ali tinha passado, que podia escrever? Não falar de quem mais importa – dos que lá estavam, dos que se perderam, dos que ficaram perdendo tanto, perdendo tudo, do que falhou e do que ainda é preciso fazer. Não faltam colegas a fazer isso, basta abrir o PÚBLICO, basta abrir qualquer jornal ou revista, ligar a rádio, ver televisão. Se vais mergulhar nas fotografias que fizeste há um ano, eu vou contar o que não estava na reportagem que escrevi na altura. Vou falar de nós, os jornalistas. Os que menos importam. Mas que também não saíram incólumes daquele dia.
Houve vários jornalistas e amigos a fazê-lo. A transcrever as memórias dolorosas daqueles dias. E não faltaram, claro, críticas a essa exposição tão pouco natural em quem trabalha para contar os outros, não a si próprio. Mas, para tantos de nós, Pedrógão foi diferente de tudo o que já tínhamos vivido. Difícil de explicar até a nós mesmos. Que dor é esta quando não perdemos alguém, nem casa, nem empresa, nem animais, nem campos? A explicação é fraca, mas é a única que tenho para oferecer: tinham de ter estado lá para perceber.
Naquele domingo de calor intenso, acordei com a TSF a debitar o número de vítimas mortais conhecidas até então (muito menor do que as 66 a que chegaríamos depois, mas já tantas, tantas). Lembro-me da incredulidade, de ligar a televisão e ir procurar informação no site do PÚBLICO. De ver as fotografias do Adriano, de as partilhar. Incrédula, incapaz de me mexer por algum tempo. Depois, o telefonema para o jornal. Era preciso ir trabalhar? Sim, não para ir para o terreno, mas ajudar na redacção.
Mas mudou tudo. Afinal, era preciso ir para Pedrógão. O Paulo largou as férias. Íamos os dois. Lembro-me de um amigo que, pressentindo que poderia acabar o dia ali, mesmo sendo a minha folga, me enviou uma mensagem e pediu que tivesse cuidado. Do GNR que junto à A13 nos disse que levantássemos a fita que cortava o acesso à estrada e seguíssemos, mas para voltarmos para trás, se se tornasse perigoso, se as chamas crescessem muito.
Lembro-me dos olhos perdidos das pessoas que esperavam ordem para regressar a casa, no estádio onde tinham passado a noite e onde chegava já tanta ajuda alimentar. Da informação de que as estradas estavam abertas para as aldeias e de nos encaminharmos para lá. Daquele céu de chumbo, fantasmagórico, como fantasmagórico seria tudo o que veríamos a seguir. Os destroços dos carros que contavam as histórias das vidas perdidas. A coluna de carros de bombeiros de locais tão diferentes que passou por nós num silêncio angustiante. O carro de reportagem de uma equipa espanhola, que já ali estava, a perguntar-nos como seguiam para Nodeirinho ou Vila Facaia, já não sei bem.
A Emília na curva da estrada. A Emília a quem demos boleia até aos Pobrais, de onde era, e nos contou a perda de familiares na estrada e nos levou à casa ardida deles no meio da aldeia. Lembro-me da colega, alucinada, que chegou numa carrinha da autarquia e interrompeu a conversa que tínhamos com a Emília, olhando sem ver, perguntando-me se eu tinha perdido alguém. Era só o que queria. Histórias que nem ouvia de quem tinha perdido alguém. Fiquei tão envergonhada por ela. Despedi-me da Emília e deixei-a a repetir o que me dissera, a alguém que não estava a ouvi-la.
Lembro-me da Cisaltina e da filha Cristina, tão triste, tão esgotada pelos telefonemas constantes a anunciar mais uma vítima. Foram elas que me apontaram a pessoa com casa nas Várzeas que passou de carro e que tinha perdido o inimaginável na noite anterior, toda a família. Lembro-me de tomar a decisão consciente de não abordar aquela pessoa. Era demasiado doloroso para ela, demasiado cedo, demasiado perto.
Mandámos o trabalho no caminho de regresso, da estação de serviço onde páramos, já noite, e finalmente comemos qualquer coisa. Na redacção, ajudámos nos últimos ajustes e, depois, fui para casa.
Assim que entrei no carro, senti que algo acabava de se toldar, de adormecer. Só quando estacionei à porta de casa, sem saber como lá tinha chegado, é que percebi que nunca devia ter ido a conduzir. Tudo o que tinha vestido, impregnado do cheiro a fumo, foi para lavar. Eu também. Deitei-me com o desejo enorme de falar com todos os que amo e de lhes dizer para viverem, viverem muito e viverem bem. Mas seriam tantas chamadas, e era tarde, e eu não conseguiria falar. Fiz um post no Facebook. Foi a última coisa que publiquei sobre Pedrógão até hoje.
Apaguei a luz e fiquei a chorar até adormecer. Sem conseguir adormecer. Acordei várias vezes e em todas elas as lágrimas voltaram. De manhã, fiquei deitada a chorar de novo até conseguir sair da cama. Tinha um serviço fora do Porto, ia ter com o Adriano a Aveiro, de comboio. Levei o jornal e caíam-me as lágrimas de cada vez que olhava para a fotografia do Paulo na capa, que tentava folhear o jornal e ler mais um texto. À minha volta, ninguém me perguntou nada. Se calhar também tinham todos vontade de chorar.
Nas semanas seguintes era sempre o mesmo. Quando tentava falar sobre o absurdo de sair dos Pobrais e logo ali, à porta da aldeia, tão perto, estar aquele amontoado de carros desfeitos, onde tantos morreram, as lágrimas toldavam-me a voz e os olhos. Quando passou um mês sobre o incêndio e me perguntaram se queria voltar lá para fazer reportagem, disse que não.
Regressei apenas há poucas semanas, porque teve de ser. Entrei pela Lousã e parei em Castanheira de Pêra, onde fui falar com dois feridos, duas pessoas que perderam um amigo, que têm tantas razões tangíveis e marcadas na pele para ainda chorarem por aquela noite. Já tinha passado quase um ano, mas quando lhes disse, “eu estive aqui no dia seguinte”, tive de parar, porque nem voz nem olhos estavam secos. Pedi-lhes desculpa. Que direito tinha eu para me sentir assim?
Ontem, não queria ter voltado. No primeiro local onde parámos foi difícil. Quando reencontrei Cisaltina, também. Ela e o marido, Álvaro, estão tão tristes ainda. “Só me dá para chorar”, disse-me ela. E ele não disse, mas as lágrimas que lhe correm por dentro eram tão visíveis como se estivessem a encharcar-lhe o rosto. O Paulo pediu-lhes desculpa por lhes oferecer as fotografias em que aparecem ambos, por serem de um dia tão triste. Mas eles agradeceram tanto por termos parado ali uns minutos a ouvi-los, por não nos termos esquecido deles.
Quando contei a uma amiga a minha reacção em Castanheira de Pêra, há poucas semanas, ela disse-me que talvez tivesse sido bom também eu ter procurado ajuda. Mas não era preciso. É só tristeza, e nunca tive medo da tristeza. Como eu, há muitos jornalistas que ali estiveram naqueles dias e que sentiram esta imensa tristeza pelo absurdo do que ali aconteceu. E se calhar ainda sentem. Mas, quando o impossível acontece, onde estaria a nossa humanidade se não ficássemos tristes por muito tempo? E isso foi o que nos aconteceu também a nós.