Sou teu fiel servo, smartphone.
Consideramo-nos seres absolutamente livres até nos apercebermos que temos que voltar a casa porque é impensável irmos para o trabalho com o telemóvel esquecido na nossa mesa-de-cabeceira, ao lado da cama. Dizemo-nos desprendidos da severa postura tecnológica, mas não adormecemos sem antes fazermos um incomensurável scroll ao Instagram para ver o que mudou desde há cinco minutos para cá. Mostramo-nos deslaçados da pressão dos gadgets, mas antes de sair da cama para ir tomar um banho, há que verificar o que aconteceu de madrugada, certamente imperdível.
Há quem se atreva a dizer que a maior prova de confiança que hoje podemos dar à nossa namorada é mostrar-lhe o que temos nos grupos do WhatsApp. Há gurus que analisam estados da relação com base nos comportamentos com o telemóvel: a relação está bem? Ninguém duvida de nada? Ninguém esconde nada? Comecem a desconfiar a partir do momento em que alguém começa a deixar o telemóvel na mesa de centro da sala com o ecrã virado para baixo. Ao que chegámos…
Hoje almoçamos com uma celebridade, vemos um concerto, vamos a uma exposição ou damos de caras com o excelentíssimo Presidente da República e temos que o testemunhar digitalmente. Não há foto? Não aconteceu. Eis o lema da Geração Y.
Como estão as coisas em casa? Mal? Discutiram? Mas incompatibilidade de horários? Stress acumulado? Fechado nos teus próprios problemas dando pouca atenção? Saúde? Ah, o telemóvel mostra que leste e não respondeste! Estou esclarecido. É a discussão 2.0.
Não vês bem para o palco e a pessoa que te podia levar às costas deslocou um ombro recentemente? Para quê preocupar? Levantas os braços e dás-lhe gás com o zoom. Espera, ficou sem bateria porque abusaste nas fotografias a quem fez a primeira parte do concerto? Veremos, porque não ouvir e sentir a música e todo o ambiente? Ficas sem uma recordação para mais tarde, não é? Hoje só a nossa memória não chega. Somos daqueles que só armazenam 2GB, é pouco.
Somos escravos do telefone. E dos espelhos. E dos elevadores. E do que se consegue fazer com um telefone num espelho de elevador. Paremos apenas uns segundos (enquanto a nova aplicação actualiza) para imaginar o que seria uma semana sem o nosso telemóvel: tínhamos ido ao àquela cascata no Gerês e ninguém sabia, tínhamos gramado com a revista Maria na sala de espera do dentista, tínhamos acordado por acaso, nunca mais tinham chegado as tuas caixas da Lancôme para o unboxing de quinta-feira, aquele primoroso prato de sushi tinha sido comido ao chegar à mesa e até os teus pais já estavam na polícia porque não sabiam de ti.
Tenho que ir, vai começar uma conference call e são meninos para me despedirem se não atender, porque diz aqui que estou online. E se estou online, ai de mim que não responda.