Uma em cada cinco universitárias já sentiu algum tipo de pressão sexual

Inquérito da UMAR foi feito a estudantes, investigadores, professores e demais pessoas que fazem parte ou têm contacto com a comunidade académica de Coimbra. Denúncias são residuais e é preciso mais consciencialização, alertam especialistas.

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Adriano Miranda

Uma bebida ao balcão, uma companhia indesejada, um comentário inadequado sobre a roupa que traz vestida, alguém que não sai de perto. Um colega que faz um comentário impróprio demasiado perto do ouvido, quando a reunião é de trabalho. O namorado que não aceita um não quando ambos já estão demasiado embriagados para que as relações sexuais sejam prazerosas — e consentidas.

São experiências que fazem parte do quotidiano de estudantes, investigadores, professores e demais pessoas que fazem parte ou têm contacto com a comunidade académica, no campus ou nos espaços de lazer. Em particular das jovens mulheres — que são a maioria das vítimas identificadas num estudo da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) Coimbra sobre assédio e violência sexual em contexto académico, que é apresentado nesta quarta-feira.

Os resultados obtidos neste “estudo exploratório”, com mais de 500 respostas a um questionário online sobre as percepções e experiências sexualmente violentas, confirmam a prevalência de várias situações que as técnicas da UMAR Coimbra já tinham identificado “formal e informalmente” nos últimos anos. Agora, com dados mais concretos sobre as percepções da violência na comunidade académica de Coimbra (77,8% dos respondentes estão ligados à Universidade de Coimbra e 12,2% ao Instituto Politécnico de Coimbra), a prevalência e os contextos onde acontecem, será possível confirmar as prioridades da estratégia de acção do projecto CAMI — Capacitar para Melhor Intervir Localmente, um projecto conjunto entre os núcleos da UMAR de Coimbra e Viseu.

Do que falamos quando falamos de violência sexual? De todo um espectro de experiências sexuais indesejadas, tanto as consideradas mais leves, como “o assédio na forma de piropos”, como de experiências sexuais consideradas mais graves, como a violação. Há ainda os casos em que existe manipulação, chantagem ou ameaça: 21,7% das mulheres e 9,3% dos homens respondentes já foram vítimas de alguma forma de coerção sexual — pressão para fazerem algo não consentido de cariz sexual.

Nestes, mais de metade das pessoas que afirmam ter sido vítimas — 59,8% das mulheres e 52,9% dos homens — dizem que os actos foram praticadas por parceiros ou ex-parceiros íntimos. Ou agressores dentro do grupo de amigos, para 9,5% das respondentes do género feminino e 11,8% do género masculino.

Academia palco de violência

Mas também o meio académico pode ser um espaço de violência sexual: 18,3% das mulheres inquiridas afirmaram que foram vítimas de coerção em situações ligadas à academia. Isto é, em rituais académicos (4,1%), grupos culturais ou desportivos (3%) ou comunidades estudantis (4,7%), ou ainda por parte de docentes (1,8%) ou por um superior hierárquico ou colega (4,7%).

Mais: 90% mulheres vítimas de coerção sexual apontaram indivíduos do género masculino como os principais perpetradores; e enquanto 87,2% dos homens afirmam nunca ter sido vítimas de uma situação deste género, apenas 68,1% das mulheres dizem o mesmo.

Os homens também são vítimas de violência sexual, mas sobretudo nas formas consideradas “mais leves”, mostram os resultados, como os “toques sexuais indesejados” e “coerção sexual”. Nas formas de agressão sexual mais graves, como tentativas de violação e violações, os dados são residuais.

Percepção de violência

A situação do bar com que se inicia este texto é-nos relatada por Ana Beatriz Rodrigues, que acumula o trabalho como técnica da UMAR a tempo parcial e o emprego num bar. Pode parecer inofensiva, mas nesse caso particular perguntou à rapariga se conhecia o rapaz, e este interrompeu-a com agressividade a dizer que não se metesse. Beatriz conta que o cenário não é incomum, mas intervenções como a sua não são habituais — percebeu que era uma situação crítica, provavelmente, porque tem “o olhar treinado”.

Algumas investidas, contudo, passam despercebidas — são ignoradas ou mesmo normalizadas pelas pessoas à volta, e às vezes pelas próprias vítimas. É uma conclusão das técnicas da UMAR neste estudo, mas também de outras especialistas no apoio a vítimas de violência sexual e outros tipos de violência de género em contexto universitário.

Natália Cardoso, gestora do Gabinete de Apoio à Vítima da APAV Coimbra, diz que as sinalizações ao GAV por parte de estudantes do ensino superior “não têm muita expressão”. Recordando o período em que decorreu o Projecto Unisexo, coordenado pela APAV entre 2011 e 2015, conclui que “os estudantes universitários têm dificuldades em se reconhecerem como potenciais vítimas e também por essa razão não activam estratégias de segurança e de ajuda”.

“Situações de violação, assédio sexual e sexting” são as mais comuns em contexto universitário, mas “o número de denúncias destes casos é residual”, confirma também Sofia Neves, investigadora do ISMAI - Instituto universitário da Maia e especialista em violência de género.

Sensibilização na Queima

Sofia Neves está a orientar uma tese de mestrado sobre percepções sobre a violência sexual no recinto da Queima das Fitas do Porto, que recolheu cerca de 300 respostas na semana depois do evento. Durante a Queima das Fitas, a investigadora e a equipa da associação Plano i, que lidera, esteve no recinto para sensibilizar os estudantes e fazer o despiste de situações de risco em termos de discriminação LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero e intersexo) e da violência no namoro, no âmbito dos projectos Centro Gis e Uni+, respectivamente.

No recinto, “situações de assédio sexual parecem ser as mais comuns, embora também haja relatos de casos de violação”, relata. E existe alguma promoção deste tipo de comportamentos? “Toda a cultura da legitimação da violência sexual é, em si mesma, incentivadora das práticas de violência”, alerta a docente, acrescentando que “não há, na generalidade, a consciência da gravidade de tais mensagens, uma vez que elas estão perfeitamente naturalizadas”.

Também através do contacto com vários estudantes durante o projecto Unisexo, Natália Cardoso diz que “foi possível perceber que estes não reconhecem as mensagens objectificadoras das mulheres como incentivadoras da violência de género”. Isto mostra que é preciso uma aposta na prevenção, assim como a “activação de estratégias de ajuda e eventual denúncia às autoridades”.

A UMAR Coimbra pretende continuar esse trabalho de consciencialização para a violência sexual. Na preparação da Queima, organizou uma Oficina de Cartazes, cujo resultado foi usado para uma campanha nas redes sociais. Em Abril, foi organizada uma oficina de Teatro das Oprimidas, com foco nas opressões de género. Carolina Moreira, técnica da ONG, reforça ainda a importância de criar espaços seguros de partilha e conversa, já que falar sobre as situações e “desfiar as histórias” é uma forma de desbloquear memórias e consciências.

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