Da herança muçulmana à CEE. Há temas que quase desaparecem da História
No próximo ano lectivo, os professores terão orientações mais vagas sobre o que deverão abordar em sala de aula no ensino básico. Será um dos efeitos das "aprendizagens essenciais" que se encontram agora em consulta pública. Sociedade Portuguesa de Matemática diz que é uma "catástrofe absoluta".
Com as chamadas aprendizagens essenciais (AE), que no próximo ano lectivo deverão substituir as metas curriculares aprovadas pelo ministério de Nuno Crato, o ensino da disciplina de História, e não só, vai tornar-se no mínimo mais conciso.
Lendo os documentos que se encontram em consulta pública até 4 de Junho no site da Direcção-Geral da Educação, é possível constatar, só a título de exemplo, que no 9.º ano de escolaridade desaparece dos objectivos de aprendizagem, que devem ser alcançados por todos os alunos, tanto a descrição do processo de adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (CEE), como os seus efeitos nomeadamente no que respeita aos fundos comunitários que desde então têm sido recebidos. Todo este processo é resumido a este postulado: “compreender a importância da entrada de Portugal na CEE para a consolidação do processo de democratização e para a modernização do país.”
As metas curriculares e as aprendizagens essenciais têm formalmente o mesmo objectivo, que é o de identificarem, a partir dos programas em vigor, quais os conhecimentos que os alunos devem obrigatoriamente alcançar por disciplina e ano de escolaridade. Mas esta é a única semelhança entre os documentos que Crato aprovou em 2012 e as AE que, embora só estando agora em consulta pública, já começaram a ser aplicadas neste ano lectivo nas 235 escolas que integram o projecto-piloto de flexibilidade curricular.
O objectivo já anunciado pelo Ministério da Educação é que a partir de 2018/2019 sejam alargadas a todas as outras escolas, um processo que começará pelos anos iniciais dos três ciclos do ensino básico (1.º, 5.º e 7.º).
Quando as metas curriculares foram aprovadas, muitos professores e também pais criticaram-nas vivamente por considerarem que eram “inexequíveis”, já que se desdobravam em centenas de descritores de desempenho, e eram também “limitativas” da acção do professor em sala de aula. As aprendizagens essenciais agora propostas são exactamente o contrário: o número de descritores de desempenho foi cortado para menos de metade, dando-se aos professores a liberdade de “gerir o programa” tendo em conta “os alunos que têm pela frente, as escola onde estão inseridos e os acontecimentos que vão surgindo”, descreve a presidente da Associação de Professores de Geografia, Emília Sande.
Para esta docente, as orientações agora propostas correspondem “a outra lógica pedagógica, que vem responder também ao que a sociedade e as empresas hoje necessitam dos jovens” ou seja que tenham “maleabilidade intelectual, criatividade e capacidade de lidar com a insegurança”, entre outros atributos. Apesar dos conteúdos de Geografia terem sido reduzidos nas aprendizagens propostas para o 2.º ciclo, em que esta disciplina é dada em conjunto com História, Emília Sande destaca que há um muito maior enfoque na aprendizagem do uso das novas tecnologias de modo a que os alunos do 6.º ano possam, por exemplo, dominar ferramentas como o Google Earth.
Apagão em História
O Ministério da Educação tem insistido que as aprendizagens essenciais foram elaboradas com base nos documentos curriculares em vigor, mas de volta à disciplina de História é perceptível que há vários conteúdos que desparecem destes novos referenciais. É o que acontece, entre vários outros temas, com a herança da presença muçulmana na Península Ibérica, o que ficou como marcas do mundo romano ou bem mais para a actualidade as características do regime estalinista na então União Soviética.
As aprendizagens essenciais foram elaboradas pelas associações de professores de cada disciplina. O PÚBLICO tentou sem êxito obter esclarecimento por parte do presidente da Associação de Professores de História. Para Paulo Guinote, autor do blogue O Meu Quintal e professor de História e Geografia de Portugal do 2.º ciclo, com as AE ficará “tudo mais esquelético no plano da progressão histórica”, mas esta é uma opção que não lhe desagrada por inteiro já que, adianta, há muitos anos que faz “uma selecção dos conteúdos a abordar com maior atenção”.
“O que poderá ser mais discutível passa pelos conceitos que se destacam para ‘identificar/analisar’. Há casos onde poderiam ser aqueles ou outros, não se percebendo a linha condutora para a sua selecção ou sequência”, refere.
Há também alguns “detalhes caricatos”, aponta: “Considero que, por exemplo, é ridículo abordar-se o conceito de ‘cidadania’ na parte do Neolítico e depois este ser ignorado em vários momentos do programa de 6.º ano, quando muito mais se justificaria e exigiria... desde logo a propósito das revoluções de 1820, 1910 e 1974 que são os verdadeiros marcos para a criação de uma ideia de ‘cidadania’”.
"Documento pacífico"
Ao contrário do que sucede com História, as aprendizagens essenciais definidas para a disciplina de Português não se diferenciam muito das metas curriculares em relação aos conteúdos abordados, mas sim no que respeita à abordagem proposta para os objectivos de ensino, confirmam as presidente das duas associações de professores de Português, Filomena Viegas e Rosário Andorinha.
Desaparece de vez um dos descritores que mais polémica gerou e que obrigava a uma cronometragem da leitura dos alunos, que tinham de dizer um número de palavras num determinado tempo que ia aumentando conforme o ano de escolaridade. E a acompanhar os documentos das AE só existem listas de livros para leitura a partir do 6.º ano de escolaridade, quando até agora isso acontecia desde o 1.º.
Filomena Viegas, da Associação de Professores de Português, lembra que estas listas continuam a incluir o programa da disciplina, mas que a opção de não as incluir nas aprendizagens essenciais se destinou a dar mais liberdade aos professores nas recomendações de leitura que fazem, “tendo em conta o contexto em que estão a dar aulas”. “O que pretendemos privilegiar é a vontade de ler por parte dos alunos e não a orientação da leitura para certo tipo de textos”, frisa. No conjunto, adianta, as AE “não se ficam pelos pormenores, esquecendo uma abordagem mais global, como acontecia com as metas curricular, privilegiam o saber usar, mesmo que não se saiba ainda o conceito, como por exemplo pode acontecer com os conectores [expressões que ligam palavras]”.
Rosário Andorinha, presidente da Associação Nacional de Professores Portugueses, diz que na elaboração das novas orientações “tentaram respeitar ao máximo o programa em vigor, condensando onde se comprovou que este era demasiado longo e não estava a ser exequível”. Foi um trabalho de conjunto entre duas associações com perspectivas diferentes que se conseguiram entender naquilo que consideram ser fundamental para os alunos, tendo daí resultado “um documento pacífico”, adianta.
O problema da Matemática
Já o mesmo não pode dizer o presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), Jorge Buescu, cuja organização foi afastada deste processo. Agora lendo o que se encontra em consulta, Buescu afirma que “ultrapassou” os piores receios da SPM e que se está perante “uma catástrofe absoluta”. “Não é possível comparar estas propostas com as metas, já que as aprendizagens essenciais são paupérrimas em termos de conteúdos. Em linguagem matemática diria que são um conjunto vazio, com o qual cada professor poderá fazer o que quiser” e que, “por serem tão vagas, impedem que se identifique se há conteúdos que despareceram ou não”, mas fazem com que o programa em vigor se torne “em letra morta”.
A presidente da Associação de Professores de Matemática (AMP), Lurdes Figueiral, contrapõe, afirmando que as reacções dos professores que já as aplicaram este ano são “globalmente positivas” e que se podem resumir em dois tipos de argumentos: “posso de novo respirar”/ “sinto-me de novo legitimada nas minhas práticas lectivas”. E quanto ao programa em vigor frisa que “o essencial dos conteúdos temáticos está presente [nas aprendizagens essenciais], embora o trabalho de articulação com o programa seja difícil pela abordagem e organização que este preconiza”, o que tem levado a APM a defender a sua substituição por outro novo.