Mulheres na Arquitectura: um colectivo para combater a invisibilidade delas na profissão
Já estão em maioria quando se contam as entradas nas universidades e representam quase metade dos inscritos na Ordem dos Arquitectos. Mas a feminização da profissão ainda não significa igualdade. Activistas querem políticas de género integradas nas cidades. Em nome da diversidade
Volta e meia, quando saía do atelier para acompanhar obras, a história repetia-se. Lia, arquitecta, estava ao lado de Pedro, arquitecto. Mas para os trabalhadores, ela era apenas a “menina Lia”, ele o “arquitecto Pedro”. A narrativa não soará desconhecida para muitas mulheres no ofício — e será apenas a ponta de um novelo cheio de nós por desatar. Quem o diz é o colectivo Mulheres na Arquitectura que está desde Junho a tentar combater a “invisibilidade” feminina na profissão. O preconceito, diz Patrícia Santos Pedrosa, uma das fundadoras, começa nas universidades, acontece entre pares, prolonga-se até aos clientes e outros cidadãos. Apesar da “efectiva feminização” da profissão — onde as mulheres já são 44% das inscritas na Ordem dos Arquitectos e estão em maioria quando se contam as entradas e saídas das universidades — a desigualdade ainda reina nos ateliers nacionais, denunciam as activistas.
Lia Antunes já o sentia na pele quando decidiu estudar o tema. Em 2012, na Universidade de Coimbra, fez da tese de mestrado um mergulho no universo feminino da arquitectura. E deparou-se com um deserto no que a Portugal dizia respeito: “Não havia ninguém a estudar o assunto”, contou ao P3.
Nesse capítulo, congratula-se a arquitecta de 29 anos, muitos passos foram dados nos últimos cinco anos: “Há agora algumas pessoas a debruçarem-se sobre isto”. E Lia Antunes, também associada do Mulheres na Arquitectura, continua nessa lista: em 2016 estreou um doutoramento focado nas experiências feministas na arquitectura — mas “a nível internacional”, sublinhe-se. Por cá, no que a práticas diz respeito, continuamos em território pouco povoado.
Foi com esse cenário que, em Junho, nove activistas da causa se uniram para criar o colectivo Mulheres na Arquitectura. Ainda que estejam por fazer “inquéritos aprofundados à profissão” (e isso seja algo “urgente”), Patrícia Santos Pedrosa não acumula muitas dúvidas: “Qualquer uma de nós, se parar para pensar, dirá que em algum momento já sentiu preconceito.”
O topo da pirâmide não é para elas
Quando se analisam os números da Ordem dos Arquitectos, o desequilíbrio não é gritante: elas já representam quase metade (44%) das inscrições. Mas esmiuçando, diz Patrícia, a história é outra: “Não sabemos qual o número de suspensões na ordem, mas temos a percepção de que há mais mulheres a desistir, não por opção mas porque não têm possibilidade de persistir.” E mais: “Nas estruturas dos ateliers há uma presença feminina, mas nos topos das pirâmides, nos sítios de poder, a representação é muito diminuta.”
O preconceito existe, garante o colectivo. “Estão naturalizadas algumas pré-ideias sobre a nossa incapacidade para sermos profissionais na arquitectura, um somatório de ideias comuns assustadoras”. Exemplo? As mulheres usam saias e decotes e não se pode ir às obras assim.
Na primeira sessão do ciclo de conversas Modo(s) de (R)existir, uma das iniciativas promovidas pelo Mulheres na Arquitectura, parte das declarações do bastonário da Ordem dos Arquitectos, José Manuel Pedreirinho, foram para o colectivo um diagnóstico do cenário da profissão. A dada altura, o arquitecto — que admitiu “situações de profunda desigualdade” no ofício —, congratulou-se por actualmente já ser possível às arquitectas enveredarem por outros caminhos que não a obra, onde o ambiente “não era dos mais saudáveis” para elas. “Até há 40 ou 50 anos, (...) a profissão de arquitecto era muito ligada à ida constante a obra e isso, de algum modo, pode explicar alguma não tão frequente existência de mulheres ligadas à profissão”, argumentou. “É engraçado ouvi-lo, um engraçado assustador”, comenta Patrícia Pedrosa: “Como se fosse menos preocupante haver discriminação na obra por agora podermos escolher outros caminhos na profissão.”
Há “outro tipo de agressões” para além dos “piropos” — às vezes mais subtis mas não menos relevantes. “Os olhares de confirmação do que dizemos são constantemente desviados para o colega arquitecto, retirando qualquer legitimidade às nossas competências”, conta Patrícia Pedrosa. E com clientes a situação não é distinta: “Há colegas que ouvem comentários como ‘ok, isso é muito engraçado, mas quando é que chega o arquitecto?’”
Célia Gomes, arquitecta lisboeta formada na escola do Porto, não se queixa do mesmo. A obra, diz, já não é um ambiente masculino e no terreno não sente esse preconceito. “É uma falsa questão”, aponta, para logo de seguida ir directa à denúncia que importa fazer: “O preconceito está mais dentro da classe do que fora.”
Para a arquitecta de 45 anos, docente na ESAD das Caldas da Rainha, a luta do colectivo recém-criado faz sentido mas deve focar-se na “afirmação” da mulher no meio. Porque aí sim ainda vai sentindo a balança desequilibrada: “Há uma espécie de tentativa de anular as mulheres”. Basta observar muitos dos painéis onde o tema se discute, diz. Possíveis soluções? As quotas podiam ajudar a “educar” — “houve um tempo em que não acreditava nessa solução mas agora penso que seria eficaz”.
Preconceito a sério sentiu-o de outra forma. Num atelier conhecido, ainda nos anos 90, propuseram-lhe que ganhasse metade do salário pago a um colega arquitecto com a mesma experiência e no mesmo cargo. “Essa precariedade no feminino é real”, sublinha. Quando foi mãe, sentiu-se também “claramente prejudicada” por ter muito menos tempo para dedicar ao atelier. “Essa responsabilidade devia estar mais repartida entre mães e pais. Mas esse problema ultrapassa a arquitectura.”
As pioneiras portuguesas
A luta das mulheres na profissão é longa. As duas pioneiras concluíram o curso em 1942, estava o mundo em guerra e Portugal debaixo do regime salazarista. Maria José Estanco, algarvia formada na Escola de Belas Artes de Lisboa, nunca conseguiu ser aceite em gabinetes e na câmara de Lisboa recusaram-lhe a entrada, alegadamente por não ter o serviço militar regularizado. Dedicou a vida ao ensino numa escola secundária. Maria José Marques da Silva, filha do reputado Marques da Silva e esposa de David Moreira da Silva, também arquitecto, conseguiu exercer a profissão ao lado do marido. Mas sempre na penumbra. “Até para uma mulher que já integrava a elite da arquitectura o caminho foi duro. A história tornou-a quase invisível”, aponta Patrícia Pedrosa.
A saída da sombra foi lenta. Segundo o colectivo, nos anos 50 entram “mais meia dúzia” de mulheres na profissão, nos anos 60, “com a democratização do ensino superior”, a subida foi já “significativa”. E na década seguinte, sobretudo depois da democracia instalada, dá-se a “grande explosão”.
Nas salas de aula, Patrícia Pedrosa percebe o quanto há ainda por fazer: “Quando pergunto aos alunos se se lembram de alguma arquitecta portuguesa eles têm, geralmente, a memória vazia”, conta. A história corrobora a teoria do colectivo. O prémio Pritzker, criado em 1979, foi entregue a uma mulher uma única vez, em 2004, à britânica Zaha Hadid. Mas há também o polémico caso da mulher que não recebeu o maior prémio da arquitectura mas devia: em 1991, o júri escolheu Robert Venturi e deixou de fora a sua mulher e sócia, Denise Scott Brown, com quem trabalhava há 22 anos.
Arquitectura feminina ou olhares diferentes?
Quando Lia Antunes iniciou a viagem por este tema, cruzou-se com alguns autores que defendiam a existência de uma arquitectura masculina e outra feminina. Na verdade, rectifica, “não existe uma essência feminina” — até porque “todas as mulheres são diferentes entre si”. O que é real é “um olhar feminista sobre o espaço, um olhar que é necessariamente diferente”.
É que as cidades, dizem, foram construídas “por homens e para homens” — e isso é, em si só, uma discriminação. Vamos à prática: “Por exemplo, é sabido que ainda são as mulheres quem maioritariamente toma conta dos filhos e lhes prestam cuidados primários. Isso faz com que as suas rotinas diárias e movimentos na cidade sejam diferentes dos deles. É preciso perceber isso e pensar noutras políticas.”
Não é uma visão vanguardista. Em Viena, há uma estratégia de inclusão de políticas de género nas políticas urbanas da cidade desde 1992. “São só 25 anos de avanço”, salienta Lia Antunes, que está a fazer esse estudo no seu doutoramento. “Em Espanha e em França há também várias cidades a pensar nisto.” Em Portugal ainda não. Mas é esse um dos objectivos finais deste colectivo: “Repensar as cidades do ponto de vista das mulheres”, resume Lia Antunes. “É preciso criar políticas de género na arquitectura.”
É, em última análise, “uma questão de direitos humanos”, realça Patrícia Pedrosa: “Sempre que não temos as mulheres em conta estamos a esquecer uma parte significativa de preocupações, visões, intuições, vivências. Estamos a perder diversidade”.