Mulher Não Entra: até onde vai a desigualdade de género?

Na comunicação social, na academia, no sector público ou no privado, as mulheres estão em desvantagem numérica nos lugares onde se cria opinião. Para provar que esta não é uma ideia sem fundamento, o Mulher Não Entra partilha os números da desigualdade de género. A análise fica para quem segue o projecto nas redes sociais

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Snapwire/Pexels

Não há cartaz de conferência ou capa de jornal que David Crisóstomo e Maria João Pires leiam e não comecem a contar. Quantos homens, quantas mulheres, qual a percentagem de ambos os géneros? Tornou-se “uma verdadeira obsessão” para ambos, duas das sete pessoas por detrás do projecto Mulher Não Entra. A premissa é fácil de explicar: “um repositório da não presença feminina no espaço público, mediático e académico”. Online intermitentemente há mais de um ano, os balanços do fim de 2016 e previsões para 2017 tornaram-no mais visível. E por visível queremos dizer partilhado nas redes sociais, com direito a reacções em artigos de opinião e capas de jornais, discussões e alguns mea culpa de quem manda.

O Mulher Não Entra deixa a análise a quem visita e segue o Tumblr, a página de Facebook e a conta de Twitter. “Não atribuímos, à partida, uma razão que explique a falta de mulheres”, explica David, 24 anos. É uma espécie de “retrato numérico” recheado de retratos masculinos. “O objectivo é fazer uma espécie de rastreio da invisibilidade feminina nos espaços de poder”, define Maria João. Por espaços de poder entendem “opinion makers na comunicação social, academia, conselhos de administração de empresas públicas e privadas, direcções de sindicatos e de associações de estudantes, órgãos de soberania”. Com uma regra auto-imposta — nem sempre consensual entre todos os membros do projecto —, diz a gestora editorial de 50 anos: só apresentam painéis com “menos de 25% de mulheres”. “Até fomos generosos deste ponto de vista.”

Nos primeiros tempos da página, quando ainda não tinham os nomes visíveis, “toda a gente achava que era um grupo de mulheres”. “Éramos tratados como as gajas malucas, divertíamo-nos imenso”, lembra Maria João. Isto porque a ideia fundadora partiu de três homens — David Crisóstomo, Gonçalo Sousa e Filipe Henriques —, aos quais a gestora editorial se juntou, bem como Ana Martins, Diana Barbosa e João Gaspar. Une-os o facto de serem “consumidores de informação à bruta e utilizadores activos do Twitter, com uma grande consciência política”. O preconceito é tão engraçado que à maior parte das cabecinhas não cabe que um projecto destes possa ter sido ideia de três jovens homens.” Mais de mil pessoas seguem a conta do Twitter e 4800 fizeram “gosto” no Facebook.

Quando destacam as capas de publicações como as do PÚBLICO ou da Sábado, com painéis exclusivamente masculinos, não pretendem ver “uma paridade total ou apenas mulheres”, ao contrário daquilo que muitas vezes os acusam. “Limitamo-nos a exigir, salvo seja, no mínimo um quarto do género de mais de metade da população portuguesa.” David e Maria João — que colaboraram com o Livre — são a favor das quotas de género. Descrevem “a iniquidade social” como “uma falha do mercado”. David, estudante de Economia, desenvolve: “Há uma situação onde um género relativamente minoritário da população portuguesa tem uma representação muitíssimo superior àquilo que, naturalmente, deveria ter.”

Mas vamos aos números, o fetiche do Mulher Não Entra. David destaca o primeiro mês do económico Eco: nos 114 textos de opinião publicados nesse período, só dois foram escritos por mulheres. “Todos nós temos noção de que são poucas, mas quando começamos a contar é que percebemos o quão poucas, de facto, são”. As retrospectivas e as previsões “de toda a imprensa portuguesa” chocaram Maria João, e “sem excepção”. As mulheres, sublinha, “praticamente desapareceram da análise”: é o caso do Jornal Económico do último dia de 2016, do Diário de Notícias de 3 de Janeiro de 2017, do Observador em 30 de Dezembro último e do PÚBLICO de 27 do mesmo mês (um dos posts mais partilhados da página).

“A certa altura parece que não há sequer a noção. Fazem-se frisos exclusivamente ou quase masculinos como se fosse algo absolutamente normal”, irrita-se David. De 2015 para 2016, Maria João notou mais reacção a este tipo de desigualdades. “A nossa existência não será inócua (…) O Mulher Não Entra teve o seu papel na maior consciencialização da falta de visibilidade feminina nos espaços públicos fora dos sítios onde já era discutido, a academia e os meios activistas”, refere. A academia é outro dos sectores desequilibrados. Apesar de haver mais mulheres com licenciaturas, mestrados e doutoramentos, reiteram, isto não se reflecte no número de professores catedráticos e órgãos dirigentes de universidades. “O que está na base disto é o tradicional papel de cuidadora das mulheres (…), cujas obrigações familiares roubam um tempo imenso”, sendo que tempo é fundamental para a “participação cívica”.

As reacções a esta contabilização variam. Se houve responsáveis de jornais que, em conversas online com os dinamizadores da página, admitiram o desequilíbrio, outros deram a resposta muitas vezes repetida — a de que há muitas mulheres a escrever nas redacções. Mas não são as redacções que interessam ao Mulher Não Entra. “Não é a mesma coisa ter um texto de opinião, que existe para fazer opinião e tem uma cara acoplada, do que saber que 60% de uma redacção é feminina.” À capa do i de 30 de Dezembro de 2016, com dez mulheres a apontar “O que esperar de 2017”, a reacção foi “francamente negativa”. Palavra a Maria João: “Eu não quero uma opinião dominada pelas mulheres, não é a minha postura. De repente aparece um painel só feminino e à laia de piadinha”.

Mas tem havido progressos, salvaguarda Maria João. “Apesar de a situação ser miserável, lembro-me bem do que era um Governo em 1980, em Portuga. Há coisas que para eles [os membros mais jovens do projecto] estão nos livros de História e para mim estão na cabeça.” Hoje, devido à lei da paridade, “o crescimento de mulheres verifica-se, tanto no Governo como na Assembleia da República”. Na semana passada, a 5 de Janeiro, o Governo português aprovou uma proposta de lei que visa, precisamente, uma representação equilibrada entre homens e mulheres nos órgãos de gestão das empresas do sector público e nas cotadas em bolsa, com um limiar de 33% até 2020. A comunicação social “está muito atrás dos órgãos eleitos”.

Tal como o Tumblr no qual se inspiraram — o All Male Panels —, o Mulher Não Entra está aberto a colaborações dos leitores e seguidores, por email (contactos.mulhernaoentra@gmail.com) mensagem privada no Facebook ou no Twitter ou através da hashtag #mulhernaoentra. Para terminar a conversa por Skype, a três vozes, Maria João lança uma outra ideia: juntar, ao Mulher Não Entra, um Jovem Não Entra. “É que uma figura de opinião respeitável em Portugal tem que ter uma pila e cabelos brancos.”

Artigo actualizado às 11h16 de 9 de Janeiro de 2017.

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