Noite de veludo

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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O dia nasceu não incomodado por nuvens. Abri as portadas de madeira que nos protegem, de noite, das fragilidades dos vidros, e dei ao sol uma última oportunidade de entrar na biblioteca sem os véus que estou a tratar de arranjar para proteger livros e móveis, com a assistência da perita decoradora que chegou à hora combinada para a nossa reunião têxtil. Conduzida pelo ex-ferreiro Galhardo, agora muito modernamente convertido em mordomo, segundo teorias económicas que nos gritam que já não há empregos para toda a vida e que o fim de uma tradição familiar artesanal não é um problema, é uma oportunidade (e cujos arautos aguardo que sejam convertidos em sapos, sem problemas), avançou a minha salvadora sobraçando um grande livro ilustrado e o Galhardo quatro grossos álbuns de amostras. Era a esses álbuns que a minha expectativa vinha agarrada, o que parecia notar-se no peso total.

Disponibilizada a minha grande mesa antiga e escura que, no centro da biblioteca, tinha a missão de comportar, abertos, dez a 12 livros grandes em consulta para a elaboração dos meus artigos mais ou menos científicos, e não ligando ao baque com que aqueles quilos de panos em livros foram ali despejados por mãos enormes habituadas ao martelo e à bigorna, convidei a minha aliada naquela jornada de descoberta a sentar-se em confortável cadeirão, a meu lado.

”Vou agora mostrar-lhe o que consegui reunir em tão pouco tempo”, disse ela, depois das saudações devidas. “Mas, para isso, dava-me jeito que libertasse a minha mão…” Tinha razão. Embrenhado no calor da hospitalidade lendária castelar, ainda não lhe tinha devolvido aquela mão pequena habituada às suavidades das sedas, entre as quais catalogaria eu o seu sorriso belíssimo. “Perdão. Imaginava que era uma pomba…”, apressei-me a dizer, acompanhando o dito com o feito. “Uma pomba? Ai que engraçado… Essa nunca tinha ouvido…” E ao abrir o primeiro álbum, não sei que trejeito fez que me enterrou o seu cotovelo esquerdo no meu rim direito numa parceria que eu diria mais pública do que privada e que ainda hoje não percebi se foi com intento ou acidental. Sei é que, quanto a cálculos renais, daquele lado, nada tenho a recear por um bom par de anos. Tudo desencravado.

“Trouxe muitas amostras de materiais para os reposteiros e para as cortinas, para que possa escolher. Mas, como muitas vezes as amostras não permitem uma visualização do efeito de conjunto, trouxe também aqui um livro com fotografias sugestivas dos efeitos dos tecidos em peças completas e aplicadas. Continuo a pensar no damasco, de que já falámos, mas há várias cores e padrões. Que tal este?”. Era uma combinação encantadora de um fundo vermelho com motivos florais num bege-dourado que parecia brilhar.

Confesso: “É muito bonito. Mas tudo isto me faz ver que não percebo nada de tecidos. Conheço nomes, alguns nomes, mas não os ligo às qualidades, não os reconheço. Apenas alguns: algodão, linho, lã, seda...”

Ela: “São os fundamentais, a partir dos quais os outros se fazem, se excluirmos as fibras sintéticas, artificiais: a seda da China, o linho do Nilo, a lã da Europa, o algodão da Índia.”

“Então e o veludo? Adoro o veludo: o toque, a macieza, o aspecto, mas especialmente o modo como apresenta as cores. Não conheço cores mais intensas, mais profundas, mais puras. Diria que o veludo está para os tecidos como os díodos emissores de luz estão para as lâmpadas: cores homogéneas, ideais, absolutas.”

Puxou outro álbum para junto de si, mas manteve-o fechado, com as mãos apoiadas sobre a capa. “É como diz. A forma como o veludo reflecte a luz, parecendo não reflectir, é talvez o seu segredo. É por isso que é o material escolhido para expor diamantes e outras jóias. No veludo há beleza e há mistério.”

“Exactamente. E a beleza do mistério é insuperável. Mas como é feito?”

“Começou por ser feito de seda. Do Próximo Oriente chegou à Itália, a Veneza e a Génova. O veludo genovês ganhou especial reputação. Para o tornar mais barato, passou a ser feito de lã, algodão e até de linho, e foi trabalhado de forma a ter diferentes acabamentos — lisos, canelados ou lavrados — e diferentes densidades — o mais fino para vestuário, os intermédios para cortinados, reposteiros, drapeados de dosséis, e os mais grossos para estofos.”

Na realidade, segundo lhe confiei, o que eu procurava – como tantos de nós – era voltar a sentir o que tinha sentido muitos anos antes, na passagem da infância para a adolescência, quando nos admiramos das coisas novas e o impacto da descoberta cria uma memória diversa das anteriores, sem o repisar de sensações que é muito da vida daí para a frente. O que eu procurava era a maravilha daqueles comprimentos de onda exactos, daquelas fatias finíssimas do espectro de luz que aparentemente só eu via, que tinham emitido, há tantos anos, aqueles retalhos que uma prima, mãe de primos, me tinha oferecido para brincar, sobras do tecido com que fazia quebra-luzes de candeeiros, em casa. O que eu procurava era saber se tinham sido verdadeiras aquelas visões, ou construídas. O que eu procurava era que tivessem sido verdadeiras.

“Vamos ver se o consigo ajudar.” E abriu o novo álbum. “Que cor procura?”

“Várias. Procuro as cores todas, as primordiais, as que nunca desbotaram. Comecemos por um vermelho que é a definição de vermelho. Não demasiado claro nem demasiado escuro, profundo, profundíssimo; puro, puríssimo...”

Ela, apontando: “É este?...”

Era. Era exactamente aquele! Toquei-lhe e estava ali. De repente, estava tudo ali: a infância, a sensação, a certeza, a cor, a emoção do reencontro. Algumas lágrimas até, que ela notou.

“Parece que reencontrou um amigo perdido há anos...”, comentou, mostrando compreensão e sinceridade em vez de susto ou embaraço, que acompanhou com um sorriso que não me pareceu comercial.

“Sabe que foi mesmo isso?... Agora mostre-me um azul da família desse vermelho, um azul que ama e é amado por aquele vermelho. Nem mais nem menos...”

“Acho que sei qual é. É este?...”

“É esse. É mesmo esse! E verde? E amarelo?...”

E verde. E amarelo. De todas as vezes acertou com o tom, com a luminosidade, com a exactidão. “Mas uma coisa é o espanto da cor, outra coisa um reposteiro feito deste material para ficar ali e resistir ao passar dos dias, não destoando e mantendo o interesse...”, alertou.

“Diz muito bem. Mas tem de ser de veludo. E tem de ser esse amarelo. Se vamos cortar o sol, devolvamos-lhe a cor para dentro. Veludo liso.”

Começou a tirar medidas e a tomar notas.  Duas janelas, uma porta dupla com caixilhos e vidraças que dava para fora, uma porta de madeira que dava para dentro.

“Desculpe”, disse-lhe eu, a medo. “Posso chamar-lhe Xerazade?”

“Porquê, se eu me chamo Joaquina?...”

“Joaquina é um bonito nome e um nome quem o faz é a pessoa, mas dava-me jeito se pudesse ser Xerazade, já que vamos ter muito de que falar.”

“Pois, mas não tenho assim tanto tempo. Talvez o surpreenda, mas tenho outros clientes. E ainda falta escolher as cortinas...”

“Amanhã?...”

“Pois bem, amanhã.”

E assim acabou a primeira noite (ainda era dia)...

Correio Premente

De Luís Carlos Candente, freguesia de Chancelaria, Torres Novas: “Diga-me uma coisa, Sr. Adélio [sic]: por que é que ultimamente os apresentadores dos telejornais falam em ‘as milhares de pessoas’, ‘as milhares de oportunidades’? Não terão noção do disparate?”

Parabéns por ter reparado e por ter escrito sobre isso. Mas ter-me-ia facilitado a vida se, em vez de me perguntar porquê, me tivesse perguntado se eu achava que essa construção está correcta. Na minha opinião, não está, uma vez que o artigo definido tem de concordar com o género e número do nome que se lhe segue, ou seja, teria de concordar com “milhares”, que é palavra masculina, e não com “pessoas” nem com “oportunidades”, nos exemplos citados. Pela mesma razão, também escrevemos (quando corre bem) “vários milhares de pessoas” ou “vários erros de concordância”. Quanto ao porquê, posso ensaiar algumas respostas: porque os profissionais não sabem que está errado, porque não há revisão do que escrevem, porque as pessoas estão entregues a si próprias, sem supervisão, porque os espectadores não são defendidos, porque há alguma coisa a cheirar a esturro no ensino superior, para além das praxes. Aproveito para acrescentar que tenho ideia de que o direito de utilização do título “Telejornal” pertence à RTP, que acho que o registou por ocasião do aparecimento das estações portuguesas rivais. Assim, deveria dizer-se talvez com mais propriedade noticiários quando se pretende dizer telejornais. Finalmente: não sou Adélio, sou Aurélio. 

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