Cereja-das-antilhas

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

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Nelson Garrido

Começo por dar uma explicação para a ausência de novas crónicas nas últimas semanas, apesar de não se terem notado manifestações de espanto, desilusão, protesto ou desespero, todas elas reservadas às intrigas futebolísticas e bancárias nacionais. A interrupção deveu-se a uma expedição há muito prevista a uma grande superfície, comercial mas não só, onde debaixo de cada pedra está uma palavra digna de nota, onde cada comentário, cada conversa, cada placa publicitária, cada designação de casa comercial, em néon ou pintada directamente na parede, nos dá notícia do andamento da história e da língua, e da história da língua, em passos divergentes que nenhum acordo ortográfico conserta: o Brasil.

Lembrei-me de me candidatar a uma bolsa de investigação da Fundação para a Ciência e a Tecnologia, mas temi que não encontrassem no meu projecto vestígios de Ciência ou de Tecnologia. Assim, sem ajudas de custo e avesso a recorrer à engenharia financeira do “crowdfunding”, que reservo para reparar os telhados da casa, reduzi as bagagens ao que julgava ser o estritamente necessário, até ter chocado com a realidade das burocracias modernas: o capacete colonial foi rejeitado para evitar deslocar algumas vértebras cervicais na hora de dormir sentado, a rede para borboletas teve de ser despachada, com sobretaxa, do balcão de “volumes com formato não convencional” e os meus 11 baús marítimos foram substituídos por duas maletas minúsculas com um máximo de 27 kg cada uma, onde mal couberam fatiotas utilitárias, indumentárias de conveniência, uma dúzia ou duas de livros, uma garrafa de vinho do Porto e um pacote de rebuçados da Régua.

Passemos à frente a parte dos aviões minúsculos e dos aeroportos gigantescos em que nos fazem passar pelo meio de perfumes, vinhos, relógios e coisas que parecem de comer com preços de mercado negro a caminho de terminais sempre diferentes daqueles em que desembarcámos. Passemos à frente as refeições a bordo de amostras dispostas em quebra-cabeças num tabuleiro diminuto e ingeridas a contra-relógio, e pensemos no desembarque épico num ambiente de plantas e animais de todo o género, incluindo aqueles que – mais pressentidos do que vistos – vão sendo presos por corrupção, mostrando-nos que é possível fazê-lo, a nós, que estamos em vésperas de julgamentos de espécimes semelhantes, quando não cúmplices daqueles.

Deixando as glórias do Rio de Janeiro (incluindo o hotel do mesmo nome agora fechado, para nossa tristeza) e o ramo da família que ali habita para data a combinar, rumemos à terra do outro ramo que há tanto tempo não via (“e que saudades, Deus meu...”), lá no interior do estado de S. Paulo.

Primeiro, um saltinho obrigatório a Jundiaí, terra da goiabada enlatada da minha infância e de um certo recanto da serra do Japi rico em verdura, flores e amigos. Foi em Jundiaí, há muitos anos, que conheci a acerola, nome espanhol de um fruto riquíssimo em vitamina C que também se chama, em português, azarola, azerola, cereja-das-antilhas, cereja-de-barbados, cereja-do-pará, proveniente de um arbusto da América Central (Malpighia emarginata). Num “sítio”, que para nós seria uma quinta, ouvi falar também em aranhas temíveis como a armadeira e a “marron”, palavra francesa que os brasileiros usam em vez do nosso castanho, cor castanha. No jardim, a relva é grama, a buganvília é primavera e os véus-de-noiva estão muito bem baptizados. Os beija-flores aproximam-se e param em pleno voo, pequeninos, e a água da mina corre e cai para o terreno mais abaixo. Umas aves da família dos papagaios dão grandes gritos quando passam, em bandos. São maritacas, também conhecidas por maitacas (que também quer dizer tagarelas), baitacas, humaitás, maitás, soias ou suias. Duas cadelas, “Mel” e “Zara”, tornam-se minhas amigas. No curral, um burro e dois cavalos olham-me com mais espanto do que eu para eles. Mas tenho de seguir viagem. Adeus, Paiol Velho, adeus, meus amigos. Até logo.

A passagem pela gigantesca capital do estado é a experiência imaginária de Manhattan para quem nunca foi a Nova Iorque: arranha-céus, viadutos, pontes. Não há Central Park, mas há os jardins do Ibirapuera. Não há Quinta Avenida, mas a Avenida Paulista. E há o vale do Anhangabaú, com as viadutos do Chá e de Santa Ifigénia, aqui o Teatro Municipal, acolá a Sé. E a Avenida São João da canção “Ronda”, de Paulo Vanzolini, do álbum “Álibi”, da Maria Bethânia. Então sabemos onde estamos. E gostamos.

De lá segui para as profundidades do estado de S. Paulo. Se fosse de autocarro (“ônibus”), passaria por sete horas de rectas intermináveis ladeadas de plantações de cana-de-açúcar e pastos para a criação de gado. Sorocaba, Itapetininga, Piraju, Ourinhos, Assis, Presidente Prudente. Mas desta vez fui de avião, mesmo sem bolsa. “A bolsa ou a vida!” Escolhi a vida.

Presidente Prudente, com 220 mil habitantes em 2014, “Capital do Oeste Paulista”, 445 indústrias, 8884 empresas comerciais, três universidades, nove emissoras de rádio, um jornal (“O Imparcial”), é capital, de facto, de uma vasta região. O centro da cidade é a Alta. A simbólica Praça 9 de Julho fica num quarteirão delimitado pela intersecção de dois pares de avenidas paralelas: a Presidente Washington Luiz e a Manoel Goulart, que fazem os lados superior e inferior de um quadrado imaginário, e a Coronel José Soares Marcondes e a Brasil, que fazem os lados esquerdo e direito. A partir dessa praça, o Calçadão de Prudente, uma rua comercial reservada aos peões (“pedestres”), conduz a uma feira em que os vendedores têm lojinhas atribuídas (“boxes”) num aglomerado a que chamam “Camelódromo”, não por ser um recinto destinado a corridas de camelos, mas porque aos vendedores ambulantes chamam camelôs (do francês “camelot”). Entre os muitos artigos interessantes, é possível comprar 1200 êxitos de música sertaneja num moderno módulo de memória RAM.

Entre muitas experiências, devo relevar, numa nota pessoal, a memorável festa de aniversário de pessoa de família em companhia seleccionadíssima e o convite para participar num churrasco religioso – como o são sempre – em casa de amigos preciosos, entre adeptos do Palmeiras, do Corinthians e do Santos, e pessoas normais. Em ambos os casos, a descrição do tipo de encantamento de que aquelas pessoas são capazes não é compatível com o espaço disponível.

Mas o que poderá interessar mais aos leitores já habituados a estas estopadas é o resumo da visita à Escola Estadual de Ensino Integral Professor Joel António de Lima Genésio, a cuja directora, dr.ª Maria Cecília Dugaich, professores, agentes de organização escolar e alunos, devo hospitalidade e amabilidade comoventes e a oportunidade de levar aos jovens que o quiseram uma breve prova de vida de um país que quase desconhecem, respondendo à sua espontânea curiosidade sobre os nossos costumes e maneiras de dizer.

“Você conhece o Cristiano Ronaldo?” é uma pergunta sacramental, não problemática, a não ser no ter de responder que não, causando uma desilusão que gostaria de evitar ao meu jovem interlocutor. Mas como ele também não conhecia o Neymar, ficámos quites. Menos vulgar foi perguntarem-me se eu conhecia a praia onde se viu a onda mais alta do mundo ou encontrar uma jovem que nasceu em Portugal, mas não sabia onde, porque voltou com um ano de idade para o Brasil, e que gostaria de “falar com sotaque português...”

O mesmo “sotaque português” que, de tão estranho, levou um dos alunos a perguntar: “Que língua você fala?” Ficou admirado quando o informei de que falava português e que a língua portuguesa tinha viajado de Portugal para o Brasil. Nada mais natural: não temos nenhum programa feito em Portugal que passe na televisão brasileira diariamente para lhes tornar familiar e compreensível a nossa forma de falar. A aprendizagem que nós fizemos com as telenovelas da Globo não tem ainda paralelo ao contrário. O famoso intercâmbio cultural Portugal-Brasil só se faz no sentido Brasil-Portugal. Continua assim.

Por isso respondi o melhor que pude às informações pedidas – o que comemos, se temos crise, se há pobres, de que cidade sou eu, qual a maior cidade – e de os surpreender com simplicidades como a de que existe uma construção alternativa ao uso sistemático do gerúndio (estar a ler, em vez de estar lendo) ou como é um Cartão de Cidadão ou um passaporte português. Agora imaginem que eu estava preparado para apresentar uma reportagem audiovisual sobre Portugal. Será esse o próximo passo. Terá de ser.

Correio Premente

De Elisabel Pescada, freguesia de Derreada Fundeira, concelho de Pedrógão Grande: “Enquanto espero para ver se as suas crónicas foram descontinuadas como uma margarina que se atreveu a fazer concorrência à marca eternamente preponderante, escolho aqui, entre os livros que me fazem companhia nestas terras onde os de Lisboa e os do Porto dizem que não se passa nada, um trecho que acho que ficaria bem nesse seu espaço de letras, porque me parece que o Aurélio o não vai desdenhar, quer porque quem o ler ao acaso poderá ser impressionado, como eu fui, a uma antiga maneira de dizer que é mais nova do que a mais nova que ainda há-de surgir: ‘Almas plebeias! Não sabem o que é a fidalguia do talento, que tem alcáçar nos astros, e nos antros lúgubres da terra; não entendem este fadário do «génio», que eles chamam «excentricidade», como se não houvesse um nome português que dar a isto. O leitor sabe o que isto é? Já sentiu na alma o apertar de um cáustico? Excruciaram-no alguma vez os flagelos da inspiração corrosiva, como duas onças de sublimado?

Se não sabe o que isto é, estude farmácia, abra um expositor de química mineral, e verá.

Não cuidem que podem ler um romance, logo que soletram. Precisam-se mais conhecimentos para o ler que para o escrever. Ao autor basta-lhe a inspiração, que é uma coisa que dispensa tudo, até o siso e a gramática. O leitor, esse precisa mais alguma coisa: inteligência; – e, se não bastar esta, valha-se da resignação.

Ora, está dito tudo.

Leiam isto, que é verdadeiro como o Agiológio de Ribadaneira, como as Peregrinações de Fernão Mendes, como todos os livros legados de geração a geração com o sinete da crença universal.’

Do prólogo de ‘O que Fazem Mulheres – Romance filosófico’, de Camilo Castelo Branco. Espero que goste.”

Gostar?... Adorei. Sabe que não me tinha ainda atrevido a respigar aqui algumas passagens de autores predilectos por receio de maçar os leitores ou, o que é pior, os patrocinadores que poderia vir a ter se não o fizesse? Agradeço-lhe a dupla gentileza de o ter feito por mim e, o que é mais, de me ter incluído nas suas dedicatórias.

De Arlete Escaleira, do lugar de Desamparados, freguesia de Oliveira do Douro: “Se, por acaso, a sua rubrica ainda não acabou, poderia dizer-me o que há a fazer quando as prateleiras das estantes ficam arqueadas? Mas uma solução que seja barata...”

Sei. Isto é, não sei bem. Se as suas estantes, cara leitora, forem destas de comprar e montar em casa, há um truquezinho que poderá resultar, que é retirar os livros para o chão, virar as prateleiras ao contrário e voltar a pôr os livros no lugar, mas, desta vez, sem pôr em cima dos livros, ou à frente deles, aquelas recordações de viagens feitas de granito, bronze ou chumbo ou aquele candeeiro feito em pedra-de-sal ou aquele vaso para plantas em cimento. Dentro de algum tempo, a barriguinha (das prateleiras!) deverá ir ao sítio. Para ser barato, não recorra a mão-de-obra contratada. Outro truque é pôr os livros no chão e deixá-los lá ficar.

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