Se, por lá, tudo correu bem, depois de termos saído do Brasil vamos precisar de algum tempo para que o Brasil saia de nós. No meu caso, não vai sair, pelas muitas pessoas com quem não acabei de conversar e pelas outras tantas com quem não comecei ou não recomecei. Com familiares e amigos em dois estados, a despedida nunca se faz, é sempre até logo, até que um de nós possa apresentar-se no terreno do outro. Entretanto ficam as exposições de palavras que portugueses e brasileiros fazem quando falam entre si. E como havia conversas interrompidas há 11 anos, pelas crises financeiras pessoal, nacional e internacional, era preciso aproveitar o tempo que sobrou do desconto das viagens e da derrota que se sofre não pela dimensão do país, mas pela consciência da sua dimensão, e pelo número de experiências novas por quilómetro quadrado.
Não é raro que um português anule os planos que tinha feito e se resigne a instalar-se num lugar e a não sair dali enquanto puder ir desvendando as maravilhas circunvizinhas de um passeio a pé ou uma ida à janela: que árvores são aquelas, tão estranhas e belas? E o que têm os pássaros, as flores, as borboletas, as pessoas, que nunca os vi assim senão aqui, das outras vezes?... É o ar, o calor, a humidade, os cheiros, os sons, a feira de frutas e legumes do bairro, a banca de jornais e revistas, as padarias, as marcas no supermercado, o sumo que é “suco” na esquina da rua, os passeios que são “calçadas” cheios de altos e baixos e rampas de acesso criativas à vontade do freguês (porque é o freguês que paga), os mastros dos sinais de trânsito em madeira, as valetas e a localização dos semáforos nos cruzamentos das ruas e as meadas aéreas onde se perdem os cabos e os fios eléctricos que vão de transformadores enormes completamente fora de cena a caminho das casas. Sim, tudo é diferente, a ponto de ser desconcertante. E quando deixa de o ser, acabam-se as férias e temos de voltar à pressa para o nosso mundo familiar e seguro, onde, desconcertantemente, damos pela falta de algumas cores e sons e cheiros que antes de termos partido não sabíamos que faltavam. E pessoas que já sabíamos que faltavam e que continuam a faltar, porque estão lá ou são de lá, entre as quais um irmão, pai e madrasta, meus facilitadores da aclimatação ao mundo novo.
Em confortáveis cadeiras que poderiam ser de convés se estivéssemos a fazer um cruzeiro, boas tardes partilhámos a pôr a conversa em dia, resolvendo, de caminho, males como a corrupção entre detentores de cargos políticos e mistérios como a propagação das construções piramidais na antiguidade, a replicação de parte da constelação de Orion na posição relativa das pirâmides de Gizé, a intervenção de extraterrestres no curso da história da humanidade, o paradeiro do tesouro dos Templários e a sua relação, se alguma há, com o tesouro dos albigenses que escaparam ao cerco de Montségur, o futuro político do Abominável Homem das Neves na Hungria (caso o deixassem entrar no país) e outros assuntos correlatos.
Diante do anexo da casa deles onde me instalei, a que lá, em vez de anexo, chamam edícola, meditei nas nossas divergências vocabulares, seja pela conservação de vocábulos antigos que em Portugal foram substituídos por outros (talho é açougue), seja por simples diferenças de preferências entre sinónimos, seja por influências de palavras estrangeiras, seja pela relativa estranheza das palavras com origem nas línguas autóctones tupi-guarani ou por línguas africanas como o quimbundo ou por outras línguas europeias como o italiano.
Um contexto em que essas disparidades se tornam muto nítidas é no vocabulário culinário. A mandioca, que só conhecemos em farinha a que chamamos farinha-de-pau, também se pode chamar aipim e, no Nordeste, macaxeira. A farinha-de-pau cozinhada – que, para nós, continua a ser farinha-de-pau ou papa de farinha-de-pau – chama-se pirão. Em vez de creme, dizem mingau (do tupi minga’u, comida que pega). Curau é um creme de milho verde cozido em leite e açúcar que também se pode chamar canjica, mas que nada tem a ver com a nossa canja, que, como sabemos, é uma sopa de galinha com massinhas em forma de pevide. Os rissóis são rissoles, nós falamos em chamuças, croquetes, enroladinhos, eles falam em esfihas ou esfirras (tarteletes salgadas sírio-libanesas), quibe (bolo cozido ou frito de semolina recheado de carne) e só concordamos nas coxinhas, com a variante brasileira de lhe acrescentar queijo Catupiry, o que é grave. Também falam em piza portuguesa que nós não sabemos o que é nem quem inventou e apresentam um prato chamado “bacalhoada à portuguesa” que é alarmantemente parecido com o nosso bacalhau à espanhola.
E, tocando neste assunto sagrado, há um senhor brasileiro que ensina a fazer uma “bacalhoada à portuguesa muito gostosa” no YouTube e que à pergunta surpreendente “Que peixe é o bacalhau?” responde, não menos surpreendentemente: “Nenhum. Bacalhau não é peixe. Na verdade, é um processo de secagem e salga.” Isto deve ser muito desanimador para as gerações sucessivas de pescadores portugueses de longo curso que tantos perigos enfrentaram para pescar processos, pensando que eram peixes. Mas pelo menos aqueles que estão vivos ainda vão a tempo de aprender com o cozinheiro enciclopédico que “existem cinco espécies de peixes que são usadas para fazer o bacalhau” e o primeiro é “o ‘cod’ do Atlântico, chamado Gadus morhua, que é o legítimo bacalhau da Noruega”. Ora será que alguém menos ocupado do que eu a escrever esta crónicas até às quinhentas pode fazer a obra de misericórdia de informar o augusto senhor que “cod” é bacalhau em inglês e que Gadus morhua é o nome científico da espécie que, em português, se chama – sim, adivinharam – bacalhau? Ó senhor, faça-nos um grande favor: fique-se pelas receitas... Quem te manda, a ti, sapateiro, tocar rabecão?...
No Natal, não comem bacalhau, a não ser em bolinhos, embora ceiem à hora da ceia, enquanto nós ceamos à hora de jantar. Preferem comer peru e leitão e uma coisa chamada Chester, que é uma marca registada para um tipo de frango engordado a milho e soja que atinge quatro kilogramas. O bolo tradicional também não é o português bolo-rei, que desconhecem em absoluto, mas o italiano “panetone”. E o Pai Natal é francês, o Papai Noël...
Era nestas coisas que ia pensando em frente à minha edícola, sentado na minha cadeira de convés, rodeado pelos gatos da casa “Kiko”, “Mel”, “Nina” e o da vizinha “Thor”, enquanto o bebé “Nick”, branquinho de olhos azuis, decidiu subir para o meu colo agarrando-se bem com as unhas às minhas pernas e deitando-se e adormecendo sobre as folhas do livro que eu tinha tido a audácia de abrir, quem sabe se para ler um pouco. É por isso que eu gosto de livros: dão para ler e não tomam a iniciativa de se deitarem em cima de gatos.
Correio premente
De Jarbas Barbalho, Parque Furquim, Presidente Prudente: “Oi, como vai o senhor? Eu sou aquele motorista de táxi que levou o senhor mais o seu pai lá do centro até à casa do pai do senhor naquele dia em que estavam 32 graus mas com uma sensação térmica de 35 e o senhor tinha ido lá no Camelódromo comprar todos aqueles negócios e negocinhos pra levar para Portugal para dar de presente. Eu queria dizer pro senhor que depois de ter largado o senhor e o seu pai na casa do seu pai, encontrei no meu carro coisas assim bem características do Oeste Paulista como cabos USB, pen drives, videogames do Paraguai, uma roupa fantasia enfermeira em poliéster e um relógio Ferrari bem bonitinho de imitação, mas já entreguei tudo direitinho na casa do pai do senhor. Quando retornar ao Brasil eu estarei à disposição, se não tiver emigrado para Portugal. Eu já me informei com um amigo que está lá trabalhando com carreta e parece que Portugal é bem tranquilo para morar, tem bom pão porque os padeiros são todos portugueses e a Internet pega rápido. Tudo de bom.”
Obrigado pela sua atenção aos bens alheios, se bem que não me recordo de ter feito essas compras que me atribui. Gostaria de declarar que só compro relógios originais e sempre com factura (nota fiscal) com número de contribuinte (CPF)... Deve ter-me confundido com outro cliente seu. Aliás, a última vez que andei de táxi foi em Meinedo, em 1971, com um senhor de idade que tinha um Mercedes e que só andava em terceira...
De Olavo Bilac, lugar de Chão do Lopes Pequeno, freguesia de Amêndoa, concelho de Mação: “Acho que matei a pista subliminar que deixou na sua última crónica para pôr à prova a atenção e os conhecimentos literários dos seus leitores. No passo em que escreveu entre parênteses ‘e que saudades, Deus meu’, estou convencido que se estava a referir ao poema “Balada da Neve”, da autoria de Augusto Gil, na seguinte estrofe:
‘Fui ver.
A neve caía
Do azul cinzento do céu.
Branca e leve, branca e fria,
Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!’
Estou certo?...”
Está certo. Mas infelizmente os famosos prémios de que o P3 dispunha para entregar a leitores perspicazes com faro para a poesia já se esgotaram, por imprevidência dos responsáveis. No entanto, não me surpreenderia se se conseguissem arranjar uns bons relógios a preços módicos.