Com o meu escritório quase completamente promovido à sua premeditada valência de biblioteca ideal, com os meus nervos a desencarquilharem-se à imagem das mãos fechadas de um bebezinho que se vão abrindo à medida que se sacia do leite vital, era tempo de responder a uma dúvida que se construía sem subsídios europeus numa parte do cérebro ainda recalcitrante às explicações neurocientíficas, mas que, mesmo assim, existe e funciona e se chama pátio das traseiras, saguão, logradouro, subcave ou caixa dos pirolitos, dependendo de cada um e da sua circunstância: quantas pessoas desconhecidas albergará este castelo e estes terrenos circundantes e adjacentes, entre familiares, empregados permanentes, trabalhadores migrantes, residentes clandestinos, fornecedores de mercearias, contrabandistas, mestres de enxertio, angariadores de mão-de-obra para a construção civil no estrangeiro, vedores, contorcionistas, malabaristas, bufarinheiros, engolidores de espadas e cuspidores de fogo, vendedores de tapetes e de televisão por cabo, membros de piquetes permanentes de desentupidores de esgotos, instaladores de salamandras e de recuperadores de calor funcionando exclusivamente a “pellets” (pastilhas de madeira), encantadores de cavalos, enólogos, podadores, mecânicos de automóveis, amigos do forno de lenha, intérpretes de búzios, borras de café, entranhas de aves e êxitos de “música pimba”, cauteleiros, mediadores imobiliários, corretores de seguros, cambistas e mineiros de hulha, cuja presença pressinto?
Vocês, citadinos, não imaginam o viveiro de microempresas em que uma casita de proporções um pouco maiores do que essas gaiolas a que chamam apartamentos se pode transformar ao longo dos tempos, como penedo coberto de lapas que se metamorfoseiam em borboletinhas estranhamente parecidas com sanguessugas que em três tempos deixam exangue quem cai na ingenuidade de lhes franquear as portas. Não franqueiem! Não franqueiem! Acima de tudo, não franqueiem! São tantos os fios em que nos enleiam – a quem tiver algo de seu – que mesmo os finos, os que mal se vêem, se nos intrometem nas passadas e nos fazem cair exactamente na porção de terreno mais enlameada, quando, envergando uma fatiota melhorzinha, nos esgueirávamos deles para ir ver uma exposição de coisas paradas. E Deus sabe como é difícil encontrar uma dessas, sem acontecimentos (“happenings”), sem “instalações” (quantas vezes fazendo recordar as sanitárias), sem partes móveis, nem que seja uma pessoa improvavelmente encaixotada em acrílico (polimetacrilato de metilo) para inglês ver (só se for um inglês, pois a maior parte das vezes não dá para ver nada através da condensação da respiração do “performer” – em português, “intérprete de fantochada” – o que é uma maçada e ligeiramente anti-higiénico).
Já decidi: chamo o mordomo ex-ferreiro, que não se chama Hudson nem Bensonmum nem Jeeves, mas, portuguesissimamente, Galhardo.
– Sr. Galhardo... – o dono do castelo tratar por senhor um serviçal dá-nos uma dimensão real do pandemónio sandeu em que caíram as relações laborais desde que, com a frouxa justificação de modernidade, acabaram com os servos da gleba – ... trate de reunir no pátio principal todos os seres viventes de conformidade aproximadamente humana que tenham como domicílio habitual e permanente, mesmo que não declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira, esta casa imemorial da família. Passarei revista!
– Sim, sr. barão. É pra já.
E, voltando atrás:
– Quem devo reunir no pátio aduaneiro?... – a sua dúvida era genuína.
– Tudo quanto respire e tenha a compleição de pagar, ou de poder pagar, ou de ser coagido a pagar impostos...
– Não sei se percebo bem o sr. marquês...
– Homem, não sou marquês. Solicito-lhe apenas que extraia das circunvoluções intersticiais deste dédalo pétreo frigorífico os parasitas coriáceos que nele se alojam...
Alarmado pela prodigiosa projecção dos seus globos oculares sem que saltassem das órbitas, apressei-me a resumir vernaculamente:
– Ó homem, quero que me junte no pátio todos os trafulhas que moram neste barraco e que comem à minha custa!...
– Ah, perfeitamente!... Por que é que o sr. baronete não disse logo? É pra já!
Ignorando o “baronete” e a sua sugestão de despromoção titular, combinei com ele de me avisar audivelmente da formatura definitiva do misto das tropas regulares e mercenárias por meio de uma trompa de caça, com cuja doçura eu pretendia acalmar o fastio que me causava a traiçoeira percussão do gongo dissonante com que ele desapropriadamente chamava os comensais a horas próprias.
Meu dito, meu feito. Soado o sinal harmónico convencionado, saí para o pátio em passo firme e majestático, ancorado numa tradição familiar que remontava à geração que tinha arrematado aquele senhorio em hasta pública. Acerquei-me do magote. A minha leve hesitação sobreveio de eles serem tantos e eu apenas um. Não tenho necessidade de mentir, caso a deontologia mo permitisse ou fizesse gazeta por razões de força maior de engordar a conta bancária transatlântica: encontrei família chegada cujo paradeiro era incerto. Foi com incontida emoção que encontrei um primo que não via desde as cheias de 99, duas tias-avós a cujos funerais pensava ter comparecido no tempo em que ainda se não usavam na rua calças rasgadas (vejam lá há quantos anos isto foi...).
Desmobilizando a família da parada, restou uma pequena multidão de outros indivíduos para mim irreconhecíveis, mas que eram seguramente filhos de alguém, a não ser que tivessem sido enjeitados e, quanto a mim, bastante compreensivelmente.
Aproveitando a oportunidade, perscrutei-os num relance e disse: “Meus amigos” (está bem, está...), “chamei-os aqui para lhes fazer um repto: quando eu disser ‘três’, vamos reunir. Só isso: reunir.” Não sei porquê, agradei. Ficaram todos contentes. Todos, não, porque não estamos em tempo de unanimidades, a não ser no descrédito nos banqueiros portugueses e nos recipientes de prémios de “O Empresário do Ano”. Não os fiz esperar: “Três!”
Foi maravilhoso: quase todos começaram a andar em círculos, como baratas tontas, galinhas sem cabeça ou jovens sem experiência profissional que não são contratados enquanto não tiverem experiência profissional. Era, de facto, formidável: não sabiam o que haviam de fazer, mas não era por isso que deixavam de o fazer, fosse lá o que fosse. Só me arrependi de ter convocado a reunião para um pátio empedrado, em vez de para o quintal amazónico, pois as silvas, tojos, roseiras-bravas, giestas, urtigas, mandrágoras, toda a sorte de arbustos silvestres, árvores de pequeno porte e espécies infestantes seriam arrasados num abrir e fechar de olhos. Quando se cansaram dos seus movimentos ridículos sem compensação monetária e começaram a abrandar o trabalhar daquele maquinismo colectivo frenético, uma pessoa, uma só, que não tinha chegado a associar-se àquela carneirada regular, levantou um braço, uma mão e um dedo e perguntou: “Mas reunir o quê?...”
Dos meus olhos cansados da plasticidade de tanto disparate caíram bagadas, que eu quis enxugar nos cabelos da autora de tão sagaz raciocínio, por sinal uma moçoila do mais são e escorreito que tem produzido o nosso campo maior. Tentando estreitá-la num proverbial amplexo dos romances de Júlio Dinis, não mo permitiu a sua conformidade robusta, que me manteve sempre a uma distância que me negou o encontro com a sua cabeleira e a uma altura em que já as solas das minhas botas não tinham tracção sobre o pavimento, de que se encontravam afastadas por mais de dois palmos. Tentei responder-lhe, mas já ela me tinha espremido toda a expiração com que normalmente falamos, proibindo-me a parte da inspiração.
Largando-me, foi do chão que, entrecortadamente, lhe disse: “Exacto. Reunir o quê? É que o verbo reunir, tal como o verbo valorizar, estrear, desmoronar, transaccionar e muitos outros igualmente engraçados, exige complemento directo. Por isso quem escreve em jornais, quem diz em rádio ou televisão não pode escrever nem dizer que “a Associação Portuguesa de Tubas e Eufónios vai reunir hoje com o primeiro-ministro”, uma vez que qualquer leitor atento e sindicalizado vai correr imediatamente para o seu programa de correio electrónico e enviar uma mensagem protestante, indagando: “Vão reunir o quê? Tubas? Eufónios? Declarações de rendimentos de ex-presidentes da Caixa Geral de Depósitos?” E aconselhando: “Escrevam antes: ‘A Associação Portuguesa de Tubas e Eufónios vai reunir-se hoje com o primeiro-ministro.’ Reunir-se. Uns e outros.” Entendido (quem dera!...).
Da mesma forma, naquelas intervenções sobre as bolsas de valores, não digam que as “acções do Banco Nacional Ultramarino fecharam a valorizar dois cêntimos por acção”. É feio. As acções, como objectos que são, não podem nem fechar nem valorizar nada. São passivos. Como tal, só podem sofrer resultados de acções de terceiros. Portanto, a sessão foi encerrada (por alguém), as acções valorizaram-se ou desvalorizaram-se (outra vez: valorizaram-se ou desvalorizaram-se) em consequência de múltiplos factores que regulam o mercado (assim como um casino, mas em ponto grande). Valorizaram-se quer dizer “foram valorizadas” por esta ou aquela acção (humana) ou por esta ou aquela conjugação de factores. Portanto, aquele “se” em “valorizaram-se” é uma partícula apassivante, isto é, é indicador de construção equivalente à voz passiva. Por isso é que não é indiferente dizer “o muro desmoronou” ou “o muro desmoronou-se”. Na primeira frase diz-se que o muro adquiriu mobilidade e desmoronou (isto é, fez ruir) algo que não foi identificado, o que não tem sentido. A segunda frase diz, correctamente, que o muro foi desmoronado, sofreu uma acção que o fez cair. A este verbos, que temos de embrulhar em complementos directos, chamam-se transitivos. Os outros, os que se podem comer logo, são os intransitivos. Por favor, não os confundamos. Já há por aí tanta confusão!...
Despedi os supranumerários domésticos, que recolheram a penates entre lamúrias e queixumes vários e que foram engrossar os números de desempregados registados nos centros de emprego, para desolação do Governo e gáudio da oposição.
Correio Premente
De Maria Bizantina, União de Freguesias de Merelim (São Pedro) e Frossos, concelho de Braga, que já é quase da casa: “Como defensor público que tem sido do eufónio, esse instrumento nobre que dificilmente encontra espaço na imprensa, gostaria de o convidar a participar no almoço anual do Clube Merelinense Olha o Eufónio, findo o qual teremos a honra de oficializar a sua condição de sócio honorário desta agremiação, contra o depósito de uma contribuição única e vitalícia de comparticipação nas despesas administrativas e na encomenda de lembrança alusiva do tipo ‘íman de frigorífico’, no valor simbólico de 400 euros, mais IVA, que poderá liquidar numa cómoda e suave prestação mensal (aplicam-se as respectivas taxas e emolumentos). Contamos com o seu espírito de convívio.”
A Sr.ª já é quase da casa, tantas são as cartas que me escreve. Teria muito gosto em comparecer a esse almoço comemorativo, mas compromissos de última hora que já sei que vou ter justamente nesse dia impedem-me de ceder aos meus desejos. Talvez noutra oportunidade. Obrigado e boa sorte para esse judicioso esquema de financiamento. Não se esqueça da questão da ortografia oficial de Frossos (que deveria ser Froços).
De Elvira Moura, lugar de Benagazil, freguesia de Torrão, concelho de Alcácer do Sal: “Chamo-me Elvira Moura e não imagina os horrores que passei durante os anos infernais da escolaridade obrigatória. Se não me gozavam por me chamar Moura, chagavam-me por me chamar Elvira. Quantas vezes ouvi imitações de antigas buzinas, mesmo quando tentava passar no exame do Código da Estrada. Foi assim que conheci o meu marido – não da parte dos ofensores, mas dos defensores, que ainda era da família do antigo presidente da Câmara Municipal de Viana do Castelo Defensor de Moura, que se mostrou à altura do nome. Foi ele que me defendeu da discriminação. Hoje já consigo entrar em qualquer carro, mas demorou. Não pensem que foi fácil. Fácil é ter amigos que nos compram apartamentos cá quando o negócio está parado e nos emprestam outros em Paris quando nos apetece ir para lá estudar Filosofia (e ainda podemos escolher os acabamentos). Isso é que é fácil...”
De Gracinda Mil-Homens, lugar de Três Figos de Baixo, freguesia de Marmelete, concelho de Monchique: “Tal como se diz Valença do Minho também se pode dizer Viana do Minho, referindo-nos a Viana do Castelo?”
Poder dizer, pode, atendendo a que não mora no meu prédio (na realidade, nem eu já moro no meu prédio), muito menos come à minha mesa. Então não há quem diga “treuze” quando quer dizer “treze”?... Mas deixe-me preveni-la de que não existe nenhuma “Valença do Minho” tal como não há “Vila Real de Trás-os-Montes” nem Póvoa “do” Varzim (mas, sim, Póvoa de Varzim). São apenas chistes dos nossos amigos do centro-sul, que são muito bons a exportá-los para todo o país (os chistes).