Quando a necessidade ocorre de construirmos um discurso mais elaborado, seja para sermos mais precisos, mais poéticos, mais subtis, mais expressivos, recorremos às reservas que fomos acumulando, ao longo do tempo, a partir de fontes em que vamos confiando, além dos nossos interlocutores habituais. A seguir aos nossos familiares e amigos, o que dizemos e como dizemos dependem bastante do que ouvimos e lemos, de canais de comunicação como a rádio, a televisão, jornais, revistas, livros, textos e vídeos da Internet, letras de canções, legendas de filmes e séries. Mas precisamos de confiar neles.
No terceiro episódio da primeira temporada da série “Os Mistérios do Dr. Blake” que o canal Fox Crime transmite, um pedido de uma personagem aparece traduzido assim: “E não me chame de corajosa...”. Apresso-me a concordar: não lhe chamem “de” corajosa! Chamem-lhe corajosa. Só. O mesmo aconteceu no documentário sobre o Edward Snowden, na RTP1: “Aquilo que chamamos de liberdade”, “aquilo que chamamos de privacidade”. Mas chamaram mal, porque o que se esperaria de uma tradução cuidada seria “Aquilo a que chamamos liberdade”, “aquilo a que chamamos privacidade”. Mas que escola nova é esta?
Traduzir não é fácil e precisa de um tempo que a maior parte das vezes não é concedido por quem faz a encomenda. Ora, quando não há tempo para meditar, para consultar, para trocar impressões, fica o tradutor entregue a si próprio e à tal reserva de vocábulos e expressões que arrecadou (e onde as arrecadou). Mas quando a exposição dos tradutores ou de outros profissionais a fontes de línguas ou normas diferentes das nossas é tão intensa que as confundem, é preciso recorrer a revisores, para que um maior controlo de qualidade possa, idealmente, corrigir os erros que põem em causa todo o restante trabalho feito.
O nosso modo é este: “O colega chamou-lhe incompetente”. “Ele era aquilo a que se podia chamar um grande profissional”. Concordas, ó Camilo (Castelo Branco)?... “Chamou-se Eulália a menina”; “(...) entendi que você era padre, e custa-me a chamar-lhe outra coisa” (“O Demónio do Ouro”). Concordas, ó Eça (de Queirós)?... “Seu avô, aquele gordíssimo e riquíssimo Jacinto, a quem chamavam em Lisboa ‘o D. Galeão’ (...)” (“A Cidade e as Serras”). Concordas, ó Ramalho (Ortigão)?... “(...) ninguém da minha família consentiu jamais em acompanhar meu tio dentro da coisa a que ele chamava um carroção, mas a que a minha avó chamava — um moinho” (“As Praias de Portugal”).
Não se escreva também “vou encontrar-me com um tal de Francisco”, mas “vou encontrar-me com um tal Francisco” ou “quem era esse tal Mendonça, de quem toda a gente falava e a quem chamavam ‘o Fura-Bolos’?”
João Gilberto, cantor brasileiro, na canção chamada “Brasil com S”, insistia, a cada quatro versos: “Quem te conhece não esquece: o meu Brasil é com S”, em oposição à grafia inglesa Brazil (com zê). Nas suas passadas, digo: “Quem te conhece não esquece: o meu chamar é sem de”.
Correio premente
De R. Lisístrata, de Arga de Cima, Caminha, recebi uma carta dizendo: “Eu e o meu genro arrendámos uma nesga de terra que estamos a lavrar para produzir beterraba. O terreno é pedregoso e íngreme, e a água de rega, temos de trazê-la às costas de quase meia légua, mas o que nos vale, aqui no meio do nada, são as suas croniquetas!... Dias houve em que eu e o Natário rebolámos serra abaixo, de tanto rir. Uma vez até caímos ao rio. Venha daí uma tarde comer da nossa merenda de cebola com sal, azeitonas e broa, molhado com tinto daquele do bom. É com ele que brindamos à sua saúde.” Fico tão sensibilizado com a sua amabilidade como com o verificar que não pôs o verbo haver no plural e que acentuou o “rebolámos”, distinguindo, assim, o pretérito perfeito do presente. Bons ares gramaticais se respiram nessas serras do Minho!
P. Cardin, de S. João das Lampas, pergunta: “Porque [por que] é que só nos fala das cartas que recebe quando hoje em dia ninguém escreve cartas? Então e os ‘e-mails’?... Francamente!...”. Caro Sr. Cardin, acuso o seu remoque e corrijo. Aqui vai a reprodução integral de uma carta que recebi por correio electrónico: “Está aí o Pereira?... Ele que traga o fio-de-prumo e a plaina aqui prá obra de S. Mamede de Infesta. É aqui no centro, entre o cemitério e a churrasqueira. Ele sabe.”
Outra mensagem electrónica, de F. de Rilha-Foles: “Não sei o que é que esse senhor que escreve praí quer, porque no fundo só se sabe armar e mais nada. Porque é que ele na semana passada tinha de chamar consulente ao velhote que não lhe fez mal nenhum? Consulente é ele, ele é que é consulente, porque o velhote até foi muito educado. Eu sou testemunha. Metam nesse espaço notícias de motocrosse, mas é.” Não sei que lhe responda que seja relevante, caro Sr. Rilha-Foles, mas olhe que, se calhar, consulente não quer dizer exactamente aquilo que imagina. Tem um dicionário? Caso não seja contra os seus princípios, consulte-o. E, mesmo que com surpresa, ver-se-á transformado num belíssimo consulente. Prevarique.
De C. Cortiço, do Redondo, recebemos: “Caro Senhor, aqui não há muito para fazer. Então, não fazemos. Só abrimos excepções para jogar dominó na taberna e apostar numas teimas. Talvez o senhor seja a pessoa para nos dizer quem ganhou esta: o meu compadre João diz que o tocador de fagote é fagoteiro porque o lançador de foguetes é fogueteiro e eu digo que não, porque o tocador de gaita de foles [gaita-de-foles] não é gaitafoleiro. Não, o tocador de fagote, cá pra mim, é fagotista, porque o tocador de piano é pianista. Já o tocador de contrafagote é contrafagotista, digo eu, mas o João acha que não, acha que é um fagoteiro do contra. Quem tem razão?” Na minha opinião, é o Sr. Cortiço que ganha a aposta, uma vez que nada tenho a apontar a fagotista nem a contrafagotista. E, já agora, se “gaitafoleiro” existisse, estou em crer que se deveria escrever “gaita-foleiro”.