Com a tranquilidade de espírito de não ter proposto o título desta rubrica e com a dor de consciência de o ter aceitado, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa. Mas como o barco salva-vidas de que disponho só passa uma vez por semana, salvo impedimento, terei de renunciar ao quadro a óleo que já imaginava onde coubessem todas as flores silvestres de qualquer campo, prado, veiga, lameiro, lezíria, várzea, tapada, sorte, leira, quintal ou talhão, e ficar-me apenas por um ramalhete compostinho que não sobrecarregue a memória e que venha a ajudar alguém num ou noutro brilharete, como o de participar num concurso de quadras ou, quando o destino não peça tanto, o de seguir um relato de futebol sem legendas em inglês. Quem sabe?...
Numa época em que a falta de subsídios financeiros não impede a procura incessante de todas as coisas anglo-saxónicas – o que sai barato ao Estado –, as nossas palavras vão sendo chutadas para debaixo da cama à medida que nos vão tolhendo o caminho decidido para a felicidade expressiva das séries de TV norte-americanas (what else?...). E, lá, naquele lugar proverbial de monstros nocturnos de todos os tempos, espiões do passado e fiscais tributários do futuro, vão ganhando – as nossas palavras – as teias de aranha que as escondem da vista e do coração a ponto de ouvirmos dizer que não existem ou, no máximo, são vergonhosamente inferiores às espectacularmente assertivas e cómodas palavras estrangeiras, em geral.
Resgatemos algumas – das nossas – desses sótãos mentais para onde foram degredadas, dêmos-lhe um bom banho, temperemo-las com uma pedrinha do nosso sal e uma gotinha do nosso azeite e, sobretudo, acompanhemo-las dos modernaços riscos de vinagre balsâmico na circunvizinhança do prato em que as vamos servir e continuaremos a maravilhar-nos com o fenómeno de como o que parece “gourmet” se vende como pãezinhos quentes.
Não se esqueçam de que uma das maiores vantagens de se viver em Portugal, para lá das doses generosas que lhe vê serem servidas quem se amesenda em restaurante do Norte, é poder aprender a língua mais facilmente. Mesmo que acheis os verbos difíceis, não deixeis de aproveitar para enriquecer o vosso vocabulário. Não há quem vá oferecer o seu melhor entusiasmo empreendedor a pizarias de Miami só para aprender inglês? Então por que razão, vós outros, jovens da minha terra, não aprendeis a falar português só porque, por azar, andais nas universidades ou caístes no limbo de empregos como os de advogados, médicos, engenheiros, professores, publicitários, tradutores de romances ou de legendas de filmes?
Vamos, não vos deixeis intimidar pela rudeza dessas ocupações. Roma e o articulado legal que não permite condenar ninguém por corrupção não se fizeram num dia. Tudo leva o seu tempo a ficar perfeito. É preciso perorar até, finalmente, vos conseguirdes alcandorar à posição suprema de presidente de conselho de administração de qualquer coisa, ou, pelo menos, de ministro ou secretário de Estado. Compenetrai-vos, porém, de que, para evitar maiores dissabores – como o escrutínio jornalístico ao que publicamente disserdes e ao que queríeis dizer (e a diferença por vezes avassaladora entre ambos) – é melhor já terdes algumas noções da língua oficial do país e uma licenciatura válida.
Mas aparemos as excrescências deste intróito antes que sejam tomadas por leitores mais escaldadiços como pretensas areias que eu lhes quereria atirar aos olhos (como se eu pudesse…) para mais facilmente me furtar de responder à pergunta de quando apresentarei a minha declaração de rendimentos (como se eu os tivesse…) ao tribunal competente (como se outros houvesse…). Como um dos que estão isentos dessa apresentação, prossigo: este intróito nada mais é do que uma inocência que poderia constar de um qualquer manual escolar dos muitos ciclos e contraciclos do nosso sistema de ensino. Aqui, é uma parte da palha que tem que pisar (nem poderia ser outro verbo, tendo em vista tão augusta plateia) quem teima em ver se eu vou, afinal, falar de alguma palavra.
Mas vou.
Historial
Tem esta palavra andado ultimamente a ser substituída – como se o pudesse ser – por “histórico”. Telefona-se para um fornecedor de serviços de Internet, televisão ou telefone, e logo (liberdade poética) uma voz que, a seu tempo, reconhecemos como não sendo mais uma gravação nos diz que vai consultar o nosso “histórico”. Pura ilusão de um sonhador bem-intencionado: o que ele pode consultar é o nosso “historial”, mesmo assim parcial, pois “historial” é que é o nome (o antigo substantivo) desta família de que nos podemos servir em tais circunstâncias. Porquê? Bem, sendo breve, porque “histórico” é um adjectivo, aquela palavra que qualifica um nome. Por essa razão, o telefonista (“operator”), o assistente que nos atende daquela central de atendimento (“call center”), poderá, quando muito, dizer que o nosso é um “historial histórico”, seja pelo montante de dívidas acumuladas, seja pela adesão a todos os “pacotes” que eles tentam receitar aos seus “pacientes” (por definição, todos os clientes de centenas de canais com pouco conteúdo inteligível, prejudicados ainda por algumas legendagens aparentemente trabalhadas por imigrantes em trânsito e dirigidos por pessoas em Barcelona sem endereços de “e-mail” conhecidos). É certo que todos os dias temos pistas que nos apontam para outras direcções, tais como pseudotraduções de instruções de “browsers” que dizem “histórico” em vez de “historial”. Mas estes programas navegadores de Internet não são prontuários ortográficos nem enciclopédias, apenas produtos de consumo que não podem servir de referência nem substituir as obras de consulta especializadas.