Vamos lá despoletar algumas confusões

Uma vez por semana, vou tentar concentrar-me na tarefa que me foi pedida de tentar salvar deste mar de uso indevido, desatenção, desprezo ou esquecimento algumas palavras da língua portuguesa

Foto
Luís Octávio Costa

Confundido pela reacção à minha primeira crónica, chamo ao alcance da vista e do coração (assim o diz, mas pelo contrário, o nosso ditado, rifão, provérbio, anexim) uma simpática carta entre as centenas que os serviços de correios carrearam, em regurgitantes sacos de lona, para as imediações da secretária a que tenho trabalhado nos últimos quase 30 anos e onde já se atulhava, sem responsabilidade alheia, uma parede de toda a sorte de papéis, livros e um ou outro objecto saído de casa de adeleiro. Coloridamente ornada de selos impressos, dir-se-ia, em terra de sonhos, a missiva (pronto, a carta...) foi obra de uma senhora de Goa, “entrada nos anos, mas com uma lucidez que dói”, que desejou fazer-me saber que muito apreciou a minha prosa, “muito frutada, com taninos fortes e reminiscências a século XIX”, onde encontrou combustível para alimentar a chama de uma identidade cultural de que comunga, mesmo que ao longe, “com outros que encontram, na articulação desta língua e na obra dos seus mais imorredoiros artífices, formas de dizer particulares que são nossas, minhas, não perdendo em expressividade, subtileza, sugestão ou ductilidade, na comparação com aquelas outras línguas que ciclicamente se vão apresentando como comercialmente hegemónicas e que vão sendo mentalmente aceites – até entre os que tomaríamos por um pouco mais cultos – como superiores”.

E acrescenta: “Não foi no século XIX que os portugueses mais endinheirados enviaram para Paris, farol cultural de então, os seus filhos, apenas para os verem regressar a fazer a apologia do francês? Esses ‘estrangeirados’ de então deram hoje lugar aos que se estrangeiram modicamente, pela Internet, no conforto ou desconforto das suas casas, conforme os casos, mas que tão esmeradamente o fazem que se esquecem – por acção dos vídeos do YouTube, das séries que descarregam sem pagar ou dos textos das instruções dos jogos – de tudo quanto aprenderam nos bancos da escola”.

E remata, admiravelmente: “Dê-lhes V. Ex.ª na cabeça, o mais que puder. Caia-lhes V. Ex.ª em cima com tudo o que tiver. E se não for suficiente, só tem de notificar-me, para que eu passe por aí, a distribuir umas vigorosas bengaladas aos mais precisados”. Que empenhamento! Que verve! Que diferença para as restantes epístolas (pronto, cartas...), que, por junto, remoem uma falta de objectividade que alegadamente encontraram no meu texto (alguns, não muitos, chegaram ao ponto do “pão, pão, queijo, queijo”, o que me indispôs mais do que a extensa lista de impropérios com que me quiseram brindar), se insurgem contra a desnecessidade das “palavras caras”, confessam, quanto a hábitos de leitura, jogar na equipa do Presidente eleito dos EUA e atestam uma escassez de livros gritante nas suas habitações ou afins (“quanto mais os dicionários que era preciso consultar para tentar entender essa pepineira!...”, desabafam, um tanto desabridamente, algumas dezenas)!

Dentro dos restantes 82 sobrescritos encontrei vários protestos de pessoas que estavam em completo desacordo com o que julgaram ser a minha análise da jornada da Taça de Portugal (como se não tivéssemos uma competentíssima secção de Desporto), ofertas de poemas para publicação, peditórios para a clonagem de dodós, para a compra de um contrafagote para uma banda de música e um folheto de compra e venda de objectos usados em ouro “que tenha lá por casa”.

Com este pano de fundo favorável, podemos, então, falar de artilharia...

“Despoletar”, por “desencadear”

Entre a terminologia militar mais usada pelos nossos co-falantes e co-escreventes estará, certamente, o verbo “despoletar”, o que não seria grave, não fosse dar-se o caso infeliz de quase sempre ser usado da forma mais errada possível, isto é, exprimindo exactamente o contrário da intenção dos seus utilizadores.

Despoletar significa “tirar a espoleta a; tornar impossível o disparo ou explosão de; impedir o desencadeamento; impedir a acção ou o accionamento de; tornar inactivo; travar; anular” (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 8.ª Edição). E se é “tirar a espoleta a”, o que é uma espoleta? Das duas páginas que a este verbete dedica a “Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira”, transcrevemos: “Artifício destinado a provocar a inflamação da carga de projécteis e a fragmentação destes”. Ou, de forma mais simples, “dispositivo que produz a detonação de cargas explosivas e projécteis; disparador” (Porto Editora, 8.ª Edição). De onde só se pode concluir, em qualquer caso, que, retirando a espoleta aos “projécteis ocos”, não há detonação, deflagração, explosão. Nada acontece. A acção foi neutralizada.

Assim, quando alguém escreve que “a Segunda Guerra Mundial foi ‘despoletada’ pelas condições draconianas impostas à Alemanha pelo Tratado de Versalhes”, quando alguém declara que “a greve foi ‘despoletada’ pelo Governo, a quem devem ser assacadas as respectivas consequências para a população”, os seus autores mais não fizeram do que confundir os verbos. Deveriam ter escolhido “desencadear”, que significa estar na origem, provocar uma cadeia de acontecimentos, de acções e reacções. Ou “sobrevir”, com a respectiva adaptação daquelas frases.

Há ainda quem, sensível ao absurdo de entender que o acto de tirar uma espoleta jamais poderia desencadear fosse o que fosse, achou que o correcto seria “espoletar”, ou seja, instalar a espoleta. Mas acontece que o acto de instalar uma espoleta não é suficiente para desencadear uma explosão, apenas que fica a carga pronta a explodir, quando a necessária acção for executada.

O mais acertado, portanto, é “desencadear”. Palavra de honra.

Sugerir correcção
Comentar