O monstro não é novo. É velho, velho.
Vai e vem, mas nunca fica muito tempo longe.
Quando o monstro não é "mainstream", fala-se das suas escamas, garras e baba nojenta.
Quando volta a predominar, ao monstro reconhece-se-lhe virtudes, lógica, um sentido de predestinação e carácter providencial.
O monstro é eficiente.
O monstro sabe que o interesse próprio é que determina o destino do mundo, e o monstro garante que os nossos são mais importantes que os deles.
O monstro é o garante da nossa excepcionalidade.
O monstro é o garante do nosso futuro enquanto melhores no mundo.
Dos milhões de refugiados que chegam e que morrem nas costas norte do Mediterrâneo e nas montanhas balcânicas, o monstro sabe que são corpos estranhos.
O monstro não se pronuncia sobre o facto de 62 pessoas possuírem a mesma riqueza que a metade mais pobre do planeta.
O monstro espuma, ladra e morde quando um refugiado consegue manter um "smartphone".
O monstro não quer saber se numa casa há pessoas malnutridas — se lá estiver uma televisão, essa casa é de parasitas.
O monstro não é novo.
O monstro emerge de tempos em tempos da lama pútrida onde se armazena.
O monstro adorou partir a Jugoslávia.
O monstro babou-se de satisfação durante a Hitleríada.
O monstro aguentou-se enquanto milhões morriam em trincheiras odiando-se no vazio.
O monstro surtou com as orelhas e mãos cortadas no Congo belga.
Com a British South Africa Company’s Police de Cecil Rhodes.
Com a rede de entrepostos de tráfico de escravos negros que Portugal mantinha por todo o mundo.
Com a eficiente Companhia das Índias holandesa.
O monstro moldou o mundo em ódio, saque, escravatura e barbárie.
Não porque não houvesse outros monstros, mas porque sempre foi o monstro mais eficiente, mais selvagem, mais bárbaro.
O monstro já foi escorraçado no passado.
O monstro sabe o que é viver escondido, mordendo a própria pata com raiva de todos os outros.
Hoje, o monstro voltou a sentar-se nos parlamentos um pouco por todo o lado e já não precisa morder-se a si mesmo.
O monstro assina decretos em que confisca os bens dos refugiados que atravessaram meio mundo a pé e o resto de barco para fugir de guerras que o monstro tanto aplaudiu, tanto incentivou e que tanto patrocinou.
O monstro uiva enquanto repercute todos os relatos que lhe são favoráveis.
Que há pessoas violadas agora, porque antes não havia.
Que há pessoas assaltadas agora, porque antes não havia.
Que é preciso tratar dos sem-abrigo de cá, antes de deixar entrar gente, mas antes era nos sem-abrigo que mordia.
Que os outros vêm roubar os empregos, quando antes não havia desempregados, a quem o monstrinho grunhia.
Além do ódio, é da ignorância que o monstro se alimenta.
O monstro precisa da simplificação, da historieta, da parangona e do tablóide.
O monstro precisa que tudo seja simples e linear para se reproduzir e produzir o monstrengo.
O monstrengo está sempre presente, ilustre representante da Idade Média, do cruzadismo, do excepcionalismo nacional, do excepcionalismo dos escolhidos monstrengos para liderar em cada nação, da a-ideologia e da razão do dinheiro.
Milhões passam fome e frio abrigados em tendas campais, depois de fugirem da guerra, acossados agora por polícia e militares e ameaçados pelos políticos dos partidos-monstruosidade.
Enquanto isso, o monstrengo discute interminavelmente a necessidade de cumprir metas orçamentais ao milímetro.
Enquanto isso, o monstrego apoia atirar armas e milhões em dinheiro para deslocar as tendas de campanha cada vez mais longe, lá onde os parasitas possam ir morrer longe da vista e longe das câmaras.
O monstro tem como sua razão ideológica o que quer que lhe sirva de ferramenta de medo e separação: deus, economia, destino, dinheiro.
A maior e mais eficiente monstruosidade de todas é esta: convencer quem não é monstro que não se trata de uma questão de ideologia, mas sim de dinheiro.
O monstro ganha quando essa ideia simples e errada faz caminho na nossa cabeça.